Page 163 - Revista da Armada
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sendo certo que essa transmissão de conhe- bejamente extravasado as fronteiras do reino, vida árdua experimentada pelos homens do
cimentos era feita dos mais tarimbados para como provam alguns testemunhos, nomea- mar, e como veremos João de Lisboa efectuou
os jovens aprendizes, que buscavam no mar, damente os do Cosmógrafo-mor castelhano inúmeras viagens de exploração e na carreira
tal como desde tempos imemoriais se veri- Alonso de Santa Cruz (c.1505-c.1572), por da Índia, não nos parece razoável, contraria-
ficou em Portugal, uma forma de ganhar o ocasião de uma disputa com Pedro Nunes, mente a outras convicções, de resto tão fun-
seu sustento. em 1545, devido a uma eventual distorção damentadas quanto as nossas, considerar que
Com o advento das grandes viagens de des- das distâncias na América do Sul. Estas preten- este poderia «ter nascido pelo meado do sé-
cobrimento, e sobretudo na sequência do es- sas irregularidades existentes nas cartas por- culo XV e ter sido embalado pelas vagas, por
tabelecimento de feitorias, primeiro na costa tuguesas a partir de 1530, encontrar-se -iam onde ainda roçava o espírito ardente do In-
ocidental africana – Arguim (1455) e S. Jorge supostamente relacionadas com a célebre fante D. Henrique e dos seus ousados colla-
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da Mina (1482) –, e posteriormente no Índico questão da localização do meridiano definido boradores» . Semelhante hipótese dar-lhe-ia
– Cochim (1501), Sofala (1505), Goa (1510), no quadro do Tratado de Tordesilhas (1494), uns vetustos 70 anos de idade, ou mais, na sua
Malaca (1511) – acrescido dos movimentos primeiramente em relação aos limites do Bra- derradeira viagem a caminho da Índia . O
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colonizadores para os arquipélagos Atlânticos sil, mas pouco tempo depois transferido para que a ter sido assim, não deixaria à época de
– Madeira (1425), Açores (1431), Cabo Verde a contenda sobre a posse das ilhas Molucas, constituir algo de extraordinário, merecendo
(1462) e S. Tomé (1496) –, logo de imediato ao abrigo do mesmo tratado. Releva ainda o obrigatoriamente uma referência nesse senti-
sucedidos pela longa e exigente colonização facto, da citação que abaixo apresentamos do nas linhas que muitos cronistas dedicaram
do Brasil, todo este envolvimento mais do às empresas em que o piloto João de Lis-
que justificou o reivindicar de um fluxo boa participou. O que, comprovadamente,
crescente de viagens e número de navios pelo menos a avaliar pela documentação
nelas envolvidos, transitando-se, num es- que chegou até aos nossos dias, não pre-
paço de poucos anos, da simples jornada Arquivo CTEN António Gonçalves figura de todo tal situação.
prospectiva para a consolidação de car- Z
reiras, que obrigaram à implementação António Manuel Gonçalves
de ligações frequentes e regulares. Não é CTEN
de admirar, pois, que a figura com a má- am.sailing@hotmail.com
xima responsabilidade na condução em Notas
Fernando Oliveira, Arte da Guerra do Mar, p. 48.
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segurança de navios, carga e passageiros, 2 Nas marinhas estrangeiras, nomeadamente nas
dados os investimentos económicos expo- de origem anglo-saxónica, são utilizados os termos
nencialmente crescentes, viesse em breve navigator ou navigating officer, para caracterizar
a adquirir honra e precedências plenamen- esta mesma função.
Designação inglesa frequentemente utilizada.
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te justificadas. Essa figura quase lendária, 4 O navtex é um equipamento que faz parte do
intimamente arraigada no nosso imaginá- sistema GMDSS (Global Maritime Distress Safety
rio de navegações e aventuras fantásticas, System), sendo utilizado na transmissão automáti-
era, como é óbvio, o piloto. ca e localizada de informação respeitante à segu-
Numa primeira fase, os conhecimentos rança da navegação marítima, utilizando o méto-
do Radio Telex, também conhecido como Narrow
eminentemente práticos, transmitidos oral- Band Direct Printing.
mente pelos mais experientes, pareceram 5 Acrónimo do sistema de navegação Global
bastar para que a segurança da navegação Positioning System.
6 Equipamento electrónico que fornece perma-
fosse a norma nas viagens entre o reino e nentemente a indicação do Norte verdadeiro, ou
a costa ocidental africana ou os arquipéla- Carta do roteiro do Brasil atribuído a Luiz Teixeira. Podem geográfico.
gos atlânticos recentemente colonizados. ver-se aqui os baixos (arrecifes) situados nas imediações da 7 Este serviço, com implantação em muitas regiões
Dobrado que foi o cabo da Boa Esperança Vila d’Olinda, junto da actual cidade de Recife, e cuja exis- costeiras, nomeadamente nos países mais desenvolvi-
tência levou a esta designação.
por Bartolomeu Dias (1487-1488), e a con- dos, é conhecido como VTS (Vessel Traffic Service)
8 Automatic Identification System.
sequente inauguração do caminho marítimo ter sido escrita vinte anos após a morte do 9 Assume particular importância a noção de rotea-
para a Índia por Vasco da Gama (1497-1499) piloto, o que demonstra que o seu nome, ou mento meteorológico, cujo objectivo principal visa
uma década mais tarde, entrou-se inevitavel- pelo menos os escritos a si atribuídos, cons- poupar o navio, a carga e a tripulação aos esforços
mente, face às exigências das viagens, numa tituíam ainda por essa altura uma referência mais violentos provocados pelo mau tempo, e, se pos-
fase de investimentos crescentes, que condu- em que se fazia fé: sível, garantir um menor tempo de trânsito, ainda que a
distância a percorrer possa, por vezes, ser maior.
ziram a navios maiores, cargas mais valiosas «[…] que se valiò para fundarlo del derrotero de 10 Distância percorrida por um navio num perío-
e também a um acréscimo daquilo que todos Juan de Lisbôa, afamado piloto portugués en la car- do de 24 horas, por definição entre dois meios-dias
menos desejavam, ou seja, novos perigos, rera de la India, que por haber ido al descobrimento consecutivos.
11 Fernando Oliveira, op. cit, pp. 50-51.
maiores riscos e, consequentemente, danos de ella, quando no existian aquellas pretenciones y
12 Salvo opinião melhor fundamentada, os roteiros nes-
cujas proporções passaram a afectar directa rivalidades, no habia sospecha de que en el estuvie- ta época eram feitos pelos próprios pilotos, copiando a
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e indirectamente um maior número de indi- sen alteradas las situaciones geográficas […]» . informação a partir dos escritos dos mais experientes.
víduos. Por um lado os maiores investidores, Uma vez que constituía vulgar prática coe- 13 Idem, ibidem, p. 48.
como eram os casos da coroa, as grandes ca- va a utilização do topónimo do local de nasci- 14 Idem, ibidem, pp.47-48.
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Laurence Bergreen, Fernão de Magalhães – Para
sas comerciais e os nobres eivados de espí- mento como apelido, é com algum respaldo além do fim do Mundo, p. 125.
rito mais mercantilista. Em segundo lugar, os que admitimos, dados os inúmeros exemplos 16 Até à sua extinção em 1973, nos veleiros baca-
que embarcavam em busca de novas e me- que o confirmam, haver o piloto João de Lis- lhoeiros o comandante do navio era designado por
lhores oportunidades, nomeadamente filhos boa nascido na principal cidade do reino de capitão, o que por certo ainda ocorre actualmente em
segundos de uma nobreza empobrecida, re- Portugal. Já relativamente à data do seu nas- navios mais pequenos.
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Martin Fernandez de Navarrete, Dissertacion so-
ligiosos, marinheiros, tripulantes, passageiros cimento não existem, infelizmente, quaisquer bre la Historia de la Nautica, p. 197.
e degredados. certezas. Afigura-se-nos no entanto como 18 Brito Rebelo, O Livro de Marinharia de João de
Fruto das nossas investigações, temos ac- provável, atendendo ao ano da sua morte Lisboa, p. XLI.
tualmente a convicção plena de que João de (1525), que possa ter nascido algures entre 19 Na sua obra Fernão de Magalhães – Para além do
Lisboa foi, sem margem para qualquer dúvi- 1470 e 1475. Queremos com isto dizer, que fim do Mundo, Laurence Bergreen diz-nos que «alguém
que tivesse chegado à casa dos trinta era considerado
da, um dos pilotos portugueses mais conhe- João de Lisboa terá falecido com uma idade um duro veterano […] os homens raramente se faziam
cidos do seu tempo. Aliás, a sua fama terá so- compreendida entre os 50 e os 55 anos. Pela ao mar com mais de quarenta anos […]», p. 123.
REVISTA DA ARMADA U MAIO 2008 17