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HISTÓRIAS DA BOTICA (59)



                                             O pugilista
                                             O pugilista

              ada um de nós carrega na alma em  res políticos intransigentes. Esteve preso por  com a mesma profunda convicção, que o
              cada segundo, em cada minuto, toda  delito de opinião – no seu país da América  nosso atleta parecia exibir. Que fantasmas se-
         Ca sua vida. Poucos, contudo, pensam  Latina. Escreveu frases que muito gosto (pois  riam os dele? Acreditei em vários, mas o mais
         sinceramente nisso. No entanto, se meditar-  acredite o leitor é possível ter amor às pala-  provável poderá ser a memória de uma ju-
         mos sobre este assunto facilmente percebe-  vras e fazer delas companheiras fiéis, quer  ventude atlética, agora longínqua... Não in-
         mos que, no silêncio das palavras não ditas,  na alegria, que na solidão). Escreveu, assim,   teressa muito quais são as suas recordações,
         transportamos os anseios mais íntimos, as pe-  esse escritor de forma clara que: “…é pos-  interessa apenas que o nosso pugilista confia,
         nas mais atrozes, os desejos mais ardentes…  sível tirar um homem da prisão, mas é difí-  naquela capacidade (digo mesmo, naquela
         muitas vezes, ainda, transportamos no fundo  cil tirar a prisão do homem…” Lembrei-me  arte), para se colocar em equilíbrio com o
         do ser os desejos de outros, da nossa famí-  daquela frase, quando vi o Pugilista treinar  Universo. Outros usarão a dança, a música
         lia, dos nossos amigos… Seria                                                   e muitos outros a escrita…
         bom, no mesmo sentido, que                                                       Foi aqui, decerto compreen-
         se pudesse fazer uma radiogra-                                                  derá o leitor a esta altura, que
         fia da alma.                                                                     me perece ter compreendido
           A vida seria em todos os sen-                                                 o nosso Pugilista. Também eu
         tidos mais fácil. Saberíamos,                                                   estou seminu expondo a alma,
         então, quem traz verdade, ou                                                    nestes escritos – já de anos. Por
         mentira. Seria fácil a destrinça                                                isso, ocasionalmente – como
         entre o Ser e o Parecer. Para os                                                lhe deve acontecer a ele tam-
         médicos seria também muito                                                      bém – recebo queixas e des-
         mais prático, pois sabe quem faz                                                gostos, por tanta exposição. Isto
         clínica, que, amiúde, muitos se                                                 acontecerá aos dois, acredito
         queixam de males que não têm                                                    eu, por sermos apenas diferen-
         (embora acreditem que por eles                                                  tes...Por vezes essas críticas en-
         estão atingidos…) e se olvidem                                                  tristecem-me, particularmente
         de outros, pouco importantes                                                    porque as palavras que escrevo
         no seu espírito, que se revela-                                                 saem de lugares profundos da
         rão fatais…                                                                     alma, sobre os quais tenho tan-
           Foi neste afazer (que se torna                                                to controle, como o marinheiro
         parte constante do pensamento,                                                  tem do vento, ou da ondulação
         após alguns anos), de ler o que                                                 do mar revolto…
         vai na alma de cada um, que                                                      Sei, porque sinto, que cada
         encontrei o Pugilista. Tratava-se                                               um combate os seus fantasmas
         de um homem de aspecto algo                                                     da forma que melhor lhe aprou-
         exótico. Corpulento, cabelo e                                                   ver, porque na morte e na vida
         barba compridos, já grisalhos,                                                  só a coragem interessa. A cada
         parecia um motard america-                                                      movimento, a cada “uppercut”,
         no. Um cavaleiro do asfalto,                                                    do nosso Pugilista imagino um
         um guerreiro…Lá estava ele à                                                    oponente atingido, uma má re-
         vista de todos, de tronco nu e                                                  cordação perdida, uma nova
         calças de fato de treino. Socava                                                força para a vida. Não parece
         o vazio, num ritmo sincopado,                                                   interessar-lhe se o acham es-
         extraordinariamente leve, para                                                  tranho, ou se outras pessoas fa-
         um homem tão corpulento. Pa-                                                    riam o mesmo. Transmite força,
         recia uma dança ensaiada, num                                                   segurança…
         qualquer ringue, de um qualquer “Madison  movimentos de boxe contra o vazio. Na ver-  Aqueles, que como eu, têm menos pro-
         Square Garden”, em que se defrontaria com  dade, cada um de nós tem os seus próprios  pensão atlética, terão que se contentar na
         um adversário real e seria aplaudido, entre  fantasmas. Muitos escondem-nos por detrás  alegria de escrever, sobre estes e outros ma-
         os rounds”, em que meninas pouco vestidas  de um verniz social postiço. Todavia há sem-  rinheiros. Na escrita, se não é encomendada,
         passeiam números desproporcionados, anun-  pre uma fase da vida em que cada homem  virá sempre algum sofrimento. Assim é com
         ciando a fase do combate…          tem que se olhar no espelho e interpretar o  quase todos os “artistas”, categoria em que
           Estávamos no Alfeite, por isso admiti que  que vê. É a condição humana fundamental:  não me ouso incluir, da pintura, da música
         este homem, provavelmente na casa dos 60,  tudo é temporário, todos teremos que partir,  e também da escrita. Habituei-me a pensar,
         seria um antigo militar. Cumprimentava quem  num dia mais ou menos próximo…A maior  que o sofrimento – nosso e de outros – nun-
         passava, com simpatia e sentia-se que gostava  parte dos homens – particularmente no nos-  ca deve ser motivo de crítica, ao contrário,
         das pessoas e do lugar. Não é, nem queria ser  so tempo – cria sucedâneos para sublimar o  deverá ser sempre motivo de orgulho, em
         um estranho…Admiti que fora um fuzileiro  desencanto, dos quais a ostentação parece  especial daqueles que não desistem, ou su-
         antigo, desses que combateram na Guerra de  estar mais na moda...     cumbem ás boçalidades, emocionalmente
         África, um velho “lobo-do-mar”, ou qualquer   Interpretei o pugilista nesse contexto. Afi-  grátis e verdadeiramente toscas, que a vida
         outra profissão ligada à Marinha…   nal também a mim me apetece muitas vezes  hoje tanto oferece.
           Ora, um escritor que eu muito aprecio, foi  socar e afastar os meus próprios fantasmas.   Sim exponho-me muito e emociono-me
         perseguido durante algum tempo, por pode-  Infelizmente não o faço com a mesma arte,  por vezes, sobre estas e outras palavras. Não

         30  NOVEMBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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