Page 356 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (59)
O pugilista
O pugilista
ada um de nós carrega na alma em res políticos intransigentes. Esteve preso por com a mesma profunda convicção, que o
cada segundo, em cada minuto, toda delito de opinião – no seu país da América nosso atleta parecia exibir. Que fantasmas se-
Ca sua vida. Poucos, contudo, pensam Latina. Escreveu frases que muito gosto (pois riam os dele? Acreditei em vários, mas o mais
sinceramente nisso. No entanto, se meditar- acredite o leitor é possível ter amor às pala- provável poderá ser a memória de uma ju-
mos sobre este assunto facilmente percebe- vras e fazer delas companheiras fiéis, quer ventude atlética, agora longínqua... Não in-
mos que, no silêncio das palavras não ditas, na alegria, que na solidão). Escreveu, assim, teressa muito quais são as suas recordações,
transportamos os anseios mais íntimos, as pe- esse escritor de forma clara que: “…é pos- interessa apenas que o nosso pugilista confia,
nas mais atrozes, os desejos mais ardentes… sível tirar um homem da prisão, mas é difí- naquela capacidade (digo mesmo, naquela
muitas vezes, ainda, transportamos no fundo cil tirar a prisão do homem…” Lembrei-me arte), para se colocar em equilíbrio com o
do ser os desejos de outros, da nossa famí- daquela frase, quando vi o Pugilista treinar Universo. Outros usarão a dança, a música
lia, dos nossos amigos… Seria e muitos outros a escrita…
bom, no mesmo sentido, que Foi aqui, decerto compreen-
se pudesse fazer uma radiogra- derá o leitor a esta altura, que
fia da alma. me perece ter compreendido
A vida seria em todos os sen- o nosso Pugilista. Também eu
tidos mais fácil. Saberíamos, estou seminu expondo a alma,
então, quem traz verdade, ou nestes escritos – já de anos. Por
mentira. Seria fácil a destrinça isso, ocasionalmente – como
entre o Ser e o Parecer. Para os lhe deve acontecer a ele tam-
médicos seria também muito bém – recebo queixas e des-
mais prático, pois sabe quem faz gostos, por tanta exposição. Isto
clínica, que, amiúde, muitos se acontecerá aos dois, acredito
queixam de males que não têm eu, por sermos apenas diferen-
(embora acreditem que por eles tes...Por vezes essas críticas en-
estão atingidos…) e se olvidem tristecem-me, particularmente
de outros, pouco importantes porque as palavras que escrevo
no seu espírito, que se revela- saem de lugares profundos da
rão fatais… alma, sobre os quais tenho tan-
Foi neste afazer (que se torna to controle, como o marinheiro
parte constante do pensamento, tem do vento, ou da ondulação
após alguns anos), de ler o que do mar revolto…
vai na alma de cada um, que Sei, porque sinto, que cada
encontrei o Pugilista. Tratava-se um combate os seus fantasmas
de um homem de aspecto algo da forma que melhor lhe aprou-
exótico. Corpulento, cabelo e ver, porque na morte e na vida
barba compridos, já grisalhos, só a coragem interessa. A cada
parecia um motard america- movimento, a cada “uppercut”,
no. Um cavaleiro do asfalto, do nosso Pugilista imagino um
um guerreiro…Lá estava ele à oponente atingido, uma má re-
vista de todos, de tronco nu e cordação perdida, uma nova
calças de fato de treino. Socava força para a vida. Não parece
o vazio, num ritmo sincopado, interessar-lhe se o acham es-
extraordinariamente leve, para tranho, ou se outras pessoas fa-
um homem tão corpulento. Pa- riam o mesmo. Transmite força,
recia uma dança ensaiada, num segurança…
qualquer ringue, de um qualquer “Madison movimentos de boxe contra o vazio. Na ver- Aqueles, que como eu, têm menos pro-
Square Garden”, em que se defrontaria com dade, cada um de nós tem os seus próprios pensão atlética, terão que se contentar na
um adversário real e seria aplaudido, entre fantasmas. Muitos escondem-nos por detrás alegria de escrever, sobre estes e outros ma-
os rounds”, em que meninas pouco vestidas de um verniz social postiço. Todavia há sem- rinheiros. Na escrita, se não é encomendada,
passeiam números desproporcionados, anun- pre uma fase da vida em que cada homem virá sempre algum sofrimento. Assim é com
ciando a fase do combate… tem que se olhar no espelho e interpretar o quase todos os “artistas”, categoria em que
Estávamos no Alfeite, por isso admiti que que vê. É a condição humana fundamental: não me ouso incluir, da pintura, da música
este homem, provavelmente na casa dos 60, tudo é temporário, todos teremos que partir, e também da escrita. Habituei-me a pensar,
seria um antigo militar. Cumprimentava quem num dia mais ou menos próximo…A maior que o sofrimento – nosso e de outros – nun-
passava, com simpatia e sentia-se que gostava parte dos homens – particularmente no nos- ca deve ser motivo de crítica, ao contrário,
das pessoas e do lugar. Não é, nem queria ser so tempo – cria sucedâneos para sublimar o deverá ser sempre motivo de orgulho, em
um estranho…Admiti que fora um fuzileiro desencanto, dos quais a ostentação parece especial daqueles que não desistem, ou su-
antigo, desses que combateram na Guerra de estar mais na moda... cumbem ás boçalidades, emocionalmente
África, um velho “lobo-do-mar”, ou qualquer Interpretei o pugilista nesse contexto. Afi- grátis e verdadeiramente toscas, que a vida
outra profissão ligada à Marinha… nal também a mim me apetece muitas vezes hoje tanto oferece.
Ora, um escritor que eu muito aprecio, foi socar e afastar os meus próprios fantasmas. Sim exponho-me muito e emociono-me
perseguido durante algum tempo, por pode- Infelizmente não o faço com a mesma arte, por vezes, sobre estas e outras palavras. Não
30 NOVEMBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA