Page 375 - Revista da Armada
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sistema de aliança estabelecida, e da de- Tudo isto estando a Europa numa situ- ção regresse ao impulso unilateralista dos
fesa dos valores matriciais do Ocidente, ação de carência de matérias-primas, de EUA, pacificando as divergências que tal
nos quais está também impressa a marca energia, de mão-de-obra, de reserva estra- unilateralismo causou na União Europeia,
do passado português que nos chama às tégica alimentar, e também desenvolvendo permitindo olhar com determinação para a
responsabilidades pelo futuro. Foi todavia uma política de alargamento sem estudos segurança do Mediterrâneo a que a França
durante os cinquenta anos da guerra fria prévios de governabilidade, e de responsa- apela, e ter uma doutrina prudente de fron-
que Portugal teve de responder ao doloro- bilidade de segurança sem conceito prévio teiras amigas e governabilidade a leste.
so processo de desmobilização do Império de fronteiras amigas. Uma referência que A carência europeia que referi espelha-
Euromundista, na parte que lhe pertenceu também faltou à NATO na tentativa de ad- -se com gravidade desigual pelos países da
gerir até 1974. mitir antigos satélites sem prestar devida União, e Portugal não é um dos elos mais
Depois desta data, que se foi importan- atenção aos interesses da Rússia. fortes do sistema. Mas acontece que, pela
te para alterar o curso histórico do país, Se acrescentarmos a terrível demonstra- geografia, e pela definição dos interesses
também o foi para o equilíbrio mundial da ção do ataque do fraco ao forte que o terro- dos Estados e dos grandes espaços em que
Ordem dos Pactos Militares, a pertença à rismo global exerce, fazendo do Ocidente estão incluídos, Portugal está na articula-
NATO não era resposta suficiente para o o alvo indiviso, por tudo temos de admitir ção da segurança do Atlântico Norte com
apoio externo de que sempre ne- a segurança do Atlântico Sul, na
cessitámos, e por isso a adesão à articulação destas seguranças
União Europeia foi uma decisão com a segurança do Mediter-
sem alternativa. râneo, titular da soberania, em
Esta decisão ainda obedeceu redefinição geral, no território
principalmente a objectivos de continental e nos Arquipélagos
desenvolvimento sustentado da Madeira e dos Açores, obri-
com adesão aos modelos demo- gado com os Estados de Língua
cráticos, e rejeição da ameaçado- Portuguesa na CPLP, que tem no
ra implantação das estruturas do Atlântico Sul uma importante e
socialismo real: a evolução euro- poderosa presença. Tendo pre-
peia foi por nós acompanhada, sentes as debilidades do Estado
com adesão à crescente estrutu- Português, é necessário acres-
ração de um modelo final ainda centar o risco de a gestão dos re-
mal definido de unidade política, cursos vivos da Zona Económica
e com expressão incerta no cha- Exclusiva transitar para a Comis-
mado Tratado de Lisboa (2008), são Europeia.
agora em período de reflexão. Tudo ponderado, é certamente
Uma reflexão que é sobretudo possível que uma atitude de desis-
responsabilidade cívica. tência ou descaso leve a minimi-
Mas, entretanto, a circunstân- zar a narrativa de heróis do mar
cia mundial, no sentido de Or- que marca a identidade portugue-
tega, depois de 1989, queda do sa: mas o que não pode ser atenu-
Muro de Berlim, alterou-se radi- ado é o facto de o Mar vir ter com
calmente em termos de seguran- Portugal com exigências às quais
ça e defesa. ou teremos vontade e capacidade
Para tomar curta uma história de responder com voz própria, ou
longa, que certamente foi abor- a deriva para destinatários das
dada nos cursos da Academia, decisões alheias, em que a nossa
a NATO sofreu vários desafios voz não será escutada, começará
nascidos do processo de mudan- a desenhar-se no horizonte. É nes-
ça da circunstância, entre eles os tas horas de perplexidade nacio-
seguintes: a europeização da Defesa, nal que o exemplo da Dinastia de
uma exigência que teve origem Aviz e do Infante, o lema da Mari-
na exigência de distribuir equi- nha que manda honrar a Pátria, a
tativamente os encargos entre os EUA e que a histórica natureza exógena de Portu- coragem em face de uma época de incerte-
a União Europeia; a alteração do concei- gal se acentuou, porque não pode conside- za, o amor ao país e ao seu povo, servem de
to estratégico, que deixou de referir-se à rar-se alheio a nenhuma das mudanças da alicerce à vontade de colocar a inteligência
linha de encontro dos dois Pactos Milita- circunstância que se desenvolveu ao redor e o saber ao serviço da invenção de novos
res em confronto, para se terem em vista do Ocidente, da NATO, do Atlântico Norte futuros, informados de que nunca aconte-
os interesses da NATO em qualquer pon- e, acrescento, do Atlântico Sul. ceu tudo no passado, e que é na incerteza
to do mundo; a assunção da legitimidade Sobretudo nesta área, convirá não esque- que avulta o exemplo de Bartolomeu Dias,
própria para exercer o direito - dever de cer que o espaço da NATO foi limitado ao um grande marinheiro que morreu tentan-
intervenção, com lamentável exercício no Atlântico Norte numa data em que o pro- do, e a cujo esforço o futuro deu razão. É
Kosovo; e sobretudo a deriva para o uni- cesso descolonizador ainda não provocara certo que ninguém escolhe o povo e a ter-
lateralismo da administração republicana atenção à segurança do Atlântico Sul, por- ra onde lhe aconteceu nascer, e que partir é
do Presidente Bush, que levou ao desastre que a multiplicação de soberanias na costa um direito de ir e andar pelo mundo. Mas
do Iraque, ao agravamento do capital de africana não somara os seus interesses aos a outra decisão, que é um acto de amor, é
queixas no Levante, e finalmente ao receio das soberanias do continente americano, decidir ficar. A Marinha é um conjunto de
do regresso à guerra fria com o programado estas nascidas de movimentos de europeus homens que decidiram ficar.
alargamento da NATO às áreas de influ- emigrados, e não de nativos. Nesta data, a Z
ência da Rússia, com expressão na grave segurança do Atlântico Sul exige uma de- Adriano Moreira
crise que explodiu no Cáucaso por causa finição articulada com a do Atlântico Nor- Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
do desmantelamento da Geórgia. te, onde se espera e vaticina que a modera- Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa
REVISTA DA ARMADA U DEZEMBRO 2008 13