Page 372 - Revista da Armada
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A MARINHA DE D. JOÃO III (40)
O curto governo de um homem sensato e honesto
O curto governo de um homem sensato e honesto
iz-nos Diogo do Couto que quando impusesse pelas armas a todos os seus inimi- que o dote do casamento de cada uma das
a Armada de Garcia de Sá chegou a gos, mas teve um administrador sensato que filhas foi de cerca de 20 mil cruzados, que era
DBaçaim, em Janeiro de 1549, o sultão soube congregar esforços e apaziguar ânimos. tudo quanto tinha e irrisória quantia para um
Mohamed de Cambaia, lhe mandou recado A História é ingrata com este tipo de perso- fidalgo que tantos anos estivera no Oriente,
requerendo o fim das hostilidades que se ar- nagens, preferindo salientar as vitorias glorio- apontando-o como exemplo de quem servira
rastavam desde o violento cerco de Diu. Os sas e os feitos exuberantes, mas é importante de forma desinteressada e desprendida dos
seus súbditos estavam exaustos e empobre- recordar que a prolongada presença de Por- valores materiais.
cidos, dispostos a chegar a um acordo que tugal num espaço ultramarino, cuja vastidão Feitos os ofícios religiosos solenes, e antes
pusesse fim a tantos anos de sofrimento e ultrapassou largamente o que se esperaria de ainda de ser enterrado, foram de novo abertas
canseira. E o governador aceitou as propos- um pequeno país europeu com escassa popu- as sucessões que estavam fechadas no cofre
tas do sultão, consciente que estava, de apropriado e que já fora utilizado por
como a paz poderia trazer grandes van- ocasião da morte de D. João de Castro.
tagens aos próprios portugueses. Como A nomeação de Garcia de Sá foi a ter-
homem experiente das coisas da Índia, ceira sucessão indicada, cabendo ago-
sabia que as forças portuguesas atraves- ra abrir a quarta, depois de verificada
savam um momento crítico, carecen- pelo Vedor da Fazenda, e na presença
do dos meios e vontade para a guerra. dos fidalgos do Conselho. Caiu a esco-
O mundo asiático era um esplendor lha em Jorge Cabral que fora para Ba-
de oportunidades que alimentavam o çaim como capitão e que não poderia
sonho de um regresso a Lisboa com a regressar a Goa antes de Setembro, da-
fortuna e a glória suficientes para uma das as condições da monção. Para este
vida regalada, mas a guerra constante caso, em que o governador escolhido
afrontava esses mesmos sonhos. É visí- não estava em Goa, mas estava na cos-
vel como, nalguns casos, ela limitava – ta indiana, “entre o Cabo Comorim e a
em vez de beneficiar – as possibilidades costa de Diu”, mandava um regimento
de comércio e de riqueza para a coroa e real que se esperasse pela sua chegada
para os privados. E eu creio que Garcia enquanto o governo era exercido em
de Sá teve perfeita consciência disso. regência pelo Bispo, pelo Capitão de
Depois desta missão no norte, onde Goa e pelo Ouvidor Geral. Tinha esta
trocou o exercício activo do poder naval regra o objectivo de evitar os proble-
português sobre os navios que deman- mas que se levantaram a quando da
davam o Guzerate, por um acordo de sucessão de Pero de Mascarenhas, que
paz que desse alguma folga a ambas as estava em Malaca, e se viu substituído
partes, regressou a Goa e empreendeu por Lopo Vaz de Sampaio (Marinha de
resolver o conflito em que se encon- D. João III (10)).
travam envolvidos Jordão de Freitas e Jorge Cabral recebeu a notícia em
Bernardim de Sousa, enquanto capitães Baçaim, ainda durante as chuvas da
que se sucederam nas Molucas. Escla- monção e dizem algumas fontes que
receu todas as dúvidas e suspeitas que ponderou seriamente não aceitar o car-
pesavam sobre o primeiro e enviou-o go para que estava a ser nomeado. Na
de volta à sua capitania, para que termi- Jorge Cabral: Governador da Índia (1549-1550) – Lendas da Índia. sua ideia, a notícia da morte de D. João
nasse o mandato, usando da sensatez e tacto lação, deve tanto ao vigor dos que ousaram de Castro chegara a Lisboa a tempo de que a
necessários para que nenhum deles perdesse cometer grandes feitos como à sensatez dos armada que viesse em Setembro já trouxesse
a face ou a honra. Jordão de Freitas embarcou que, na altura certa, souberam equilibrar, con- novo governador, fazendo com que ocupas-
no galeão da carreira, comandado por Jorge ciliar, negociar e apaziguar. se o sublime cargo da Índia apenas por um
de Eça, e seguiu para Malaca e Ternate junto No princípio de Junho de 1549, Garcia de mês. Nessas condições acabaria por regressar
com uma caravela a mando de Cristóvão de Sá adoeceu “de umas febres agudas” que, ao reino, sem nada de seu e, sobretudo, sem
Sá. E, sabendo como o momento da rendição em poucos dias, lhe consumiram a réstia de aquilo que previra recolher enquanto capitão
no cargo era propício a conflitos e desacatos, energia que a sua avançada idade lhe deixa- de Baçaim. No contexto moral em que se en-
quando um dos capitães assumia o poder e o va. Tinha acabado de casar as suas duas úni- contrava a Índia, não é difícil acreditar que a
outro se recolhia a bordo de um navios, teve o cas filhas: a mais nova, Joana Albuquerque, decisão deve ter sido difícil: poderia estar a
cuidado de enviar uma carta secreta com or- com Dom António de Noronha que seguiu trocar quatro anos de capitão de uma forta-
dens para que Cristóvão de Sá ocupasse o car- para capitão de Malaca, e a mais velha, Leo- leza rentável, por um mês como governador
go, enquanto Bernardim de Sousa estivesse nor Albuquerque, com Manuel de Sousa Se- sem nenhum proveito pessoal. A decisão pen-
presente, e só desse posse a Jordão de Freitas púlveda. Estes dois últimos esposos foram os deu para a assunção do cargo, mas as dúvidas
quando o outro tivesse partido para Malaca. protagonistas do naufrágio do galeão S. João são significativas da mentalidade e do estado
Era sua intenção evitar os desacatos entre dois ocorrido em 1552, seguido de um penoso moral dos fidalgos portugueses no Oriente.
homens despeitados, prevenindo algo que já calvário pelas praias da costa do Natal onde Governou durante um ano, apenas, mas disso
acontecera várias vezes e que causara graves perderam a vida, no que foi um dos mais fu- daremos conta na próxima revista.
danos ao prestígio português. nestos episódios relatado na compilação fei- Z
O Estado Português da Índia não teve em ta por Bernardo Gomes de Brito na História J. Semedo de Matos
Garcia de Sá um governador vigoroso que se Trágico-Marítima. Diogo do Couto diz-nos CFR FZ
10 DEZEMBRO 2008 U REVISTA DA ARMADA