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HISTÓRIAS DA BOTICA (55)



                 O cansaço da alma e a Oficial
                 O cansaço da alma e a Oficial



         Sentado naquele molhe, vazio,      tratar-se de uma depressão, tratável por psicólo-  tos, maduros, que duram uma eternidade…Ora,
         como a minha alma                  gos ou psiquiatras. Não, desta vez aventei-lhe  naquilo a que chamamos vida moderna (…para
         Vejo chegar os navios, num vagar combinado.  com um ousado diagnóstico, fundamentado em  alguns dita “civilizada”…), quase não há tempo
         Um azul profundo me ameaça,        anos de prática, embarques que bastem e, não  para viver, para amar, para conhecer os outros. -
         no ar e na água.                   menos importante, a leitura de imensos poemas  Daí tanto “cansaço na alma”!
         Não, não faço nada...nem sinto, nem fujo.  (como aquele acima exposto): tratava-se certa-  Vivemos enquistados nos nossos apartamen-
         Aguardo as mensagens do vento…     mente de um caso de “cansaço da alma”…  tos, nestes vespeiros a que chamamos grandes
         e deixo entrar                       Nesta atitude tresloucada e decerto não apoia-  cidades. Gritamos uns para os outros, na ver-
         No mesmo vagar, ensaiado, a felicidade…  da pela Ordem dos Médicos, avancei ainda mais  tigem do trânsito, ou esborrachados em trans-
                                            e perguntei-lhe – de rajada – se vivia com a famí-  portes apinhados. Sabemos que no Paquistão
                into-me cansado”, deve ser a queixa  lia, se achava o seu trabalho entusiasmante, en-  há instabilidade, que no Iraque se morre, mas
                mais comum que se ouve num con-  fim, se preenchia o seu tempo livre com qualquer  – em muitos casos – nem conhecemos todas as
         “Ssultório médico. Invariavelmente, o  actividade distinta da televisão…Surpreendida, a  pessoas “lá do prédio”. Dominamos cada vez
         coração é o primeiro que se apresenta, na lis-  jovem Oficial, lá balbuciou que era asilante (os  mais as tecnologias da informação, mas comu-
         ta dos suspeitos, para tão terrível queixa – por  seus pais moravam na província), que gostava  nicamos cada vez menos. Temos cada vez mais
         isso, ao longo dos anos, tornei-me um perito  do seu trabalho, mas que ainda se sentia pouco  medo do mundo à nossa volta (porque vivemos
         nos “cansaços”. Senão veja-                                                       rodeados de desconhecidos
         mos: existe o cansaço no pei-                                                     e o Homem sempre temeu o
         to, o cansaço nas pernas, o                                                       que não conhece…). Ficámos,
         cansaço nos braços, o cansa-                                                      por tudo isto, cada vez mais
         ço do tipo “não aguento um                                                        agressivos uns com os outros
         gato pelo rabo”, um cansaço                                                       – sendo a ostentação a forma
         “para me mexer”, o cansaço                                                        mais divulgada (e boçal) de
         “que dá medo” e não menos                                                         dizer “afasta-te, eu sou muito
         importante, porque deveras                                                        melhor do que tu!”
         aterrador para o médico – o                                                         Também eu estou cansado
         cansaço “que nem sei bem de                                                       muitas vezes. Quando estou
         onde me vem…”                                                                     cansado procuro o alívio de
           Outros clínicos, porventura                                                     um poema. No abraço dos
         de outras áreas, acrescentariam                                                   meus filhos, revejo, todos os
         muitos outros cansaços a esta                                                     dias, a minha verdadeira di-
         já longa e fastidiosa lista. Na                                                   mensão, as minhas verdadei-
         verdade, é relativamente fácil                                                    ras certezas. Pois se o homem
         excluir o cansaço de causa                                                        é frágil – e eu, mais do que
         cardíaca. Um ou dois exames                                                       muitos, conheço bem essa fra-
         complementares e já está! O                                                       queza – temos todos que en-
         cardiologista diligente avança com um: “o seu  à vontade num ambiente eminentemente mascu-  contrar, ao longo da vida, formas de deixar cons-
         coração é normal”, ou um mais cuidadoso: “não  lino e, finalmente, que na verdade tinha poucos  truções que resistam ao tempo e estas implicam,
         parece ser ele (o coração) o culpado do seu  interesses e ainda menos amigos…Expliquei-lhe,  sempre, a conquista do coração dos outros.
         cansaço”. O problema é convencer o potencial  logo ali e agora, que assim não ia conseguir tratar-  A consulta não acabou por aqui. Recomen-
         cardíaco da ausência de doença. A maior parte  se. Recomendei-lhe que saísse. Se não tinha ami-  dei-lhe, à maneira de receita “a tomar de 12 em
         das vezes, este vai desconfiar da competência  gos, devia sair a passeio…mesmo sozinha e por  12 horas”, um, ou dois livros de poetas insignes,
         do clínico. Vai procurar outro que lhe arranje  lugares novos. É que a tristeza, sei-o bem, tende  que falam do vazio da vida e da conquista…Só
         pelo menos um “prolapsozito” de uma qualquer  a fermentar no silêncio da solidão e dos velhos  então a deixei ir, sem saber se vai voltar, ou se a
         válvula, que lhe explique o cansaço. Vai querer  lugares e, ao invés, reage bem ao desafio físico do  receita resultou?
         mezinhas, vai querer – em suma – uma doença  desconhecido que a amedronta…Deve ser por   Foi esquisita esta consulta, vão dizer muitos
         que lhe justifique a sensação de fraqueza, que  isso, que todos os grandes pensadores do mundo  dos que conhecerem estas palavras. Têm absolu-
         no sentir prevalece…               (e eu li alguns), fizeram uma grande viagem, par-  ta razão. Nem eu sei bem porque lhe falei assim,
           Foi exactamente assim com uma Sra. Oficial  ticiparam em guerras, defenderam (muitas vezes  teria sido bem mais fácil e menos custoso, em
         que procurou os meus préstimos. Moça escor-  com a vida) novos ideais e quase nunca se acha-  tempo e esforço, passar-lhe um dos ansiolíticos
         reita, com uma beleza moderna, que a farda  ram satisfeitos com as suas próprias certezas…A  da ordem estabelecida. Perdoarão. É que o silên-
         não conseguia esconder. Já havia feito todos os  alma precisa de desafios, como o corpo precisa  cio causar-me-ia uma azia no espírito, que me é
         testes, que os laboratórios de análises e muitos  de pão e este parece-me ser um dos segredos da  insuportável e, pior que tudo, teria sido uma fal-
         médicos, entre os quais alguns cardiologistas  verdadeira felicidade…  ta de coragem que envergonharia os meus ante-
         de renome, haviam ensaiado. Nada, o can-  E tenho sincera compaixão. Compaixão de to-  passados corajosos – que no céu dos justos, por
         saço não passava. Repeti eu próprio ao longo  dos os que não sentiram nunca o cheiro do vento  certo, fiscalizam os actos dos vivos. Que bom é
         de algumas visitas, outros tantos exames. Não  na manhã, a vida nos olhos dos moribundos e a  poder escrever e sentir, ao final do dia, que fize-
         encontrei nada físico que justificasse o padeci-  força, maior que a vida, que a música contém…  mos bem e que combatemos a batalha certa. Por
         mento da jovem.                    Muita, muita pena, daqueles que não compreen-  isto estou agradecido. Todos os dias!
           Avisado, por experiências anteriores, não ou-  dem que a solidão pode abarcar toda a emoção         Z
         sei, desta vez, sugerir a esta paciente que poderia  do mundo e que qualquer deserto pode dar fru-  Doc

         30  FEVEREIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA
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