Page 68 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (55)
O cansaço da alma e a Oficial
O cansaço da alma e a Oficial
Sentado naquele molhe, vazio, tratar-se de uma depressão, tratável por psicólo- tos, maduros, que duram uma eternidade…Ora,
como a minha alma gos ou psiquiatras. Não, desta vez aventei-lhe naquilo a que chamamos vida moderna (…para
Vejo chegar os navios, num vagar combinado. com um ousado diagnóstico, fundamentado em alguns dita “civilizada”…), quase não há tempo
Um azul profundo me ameaça, anos de prática, embarques que bastem e, não para viver, para amar, para conhecer os outros. -
no ar e na água. menos importante, a leitura de imensos poemas Daí tanto “cansaço na alma”!
Não, não faço nada...nem sinto, nem fujo. (como aquele acima exposto): tratava-se certa- Vivemos enquistados nos nossos apartamen-
Aguardo as mensagens do vento… mente de um caso de “cansaço da alma”… tos, nestes vespeiros a que chamamos grandes
e deixo entrar Nesta atitude tresloucada e decerto não apoia- cidades. Gritamos uns para os outros, na ver-
No mesmo vagar, ensaiado, a felicidade… da pela Ordem dos Médicos, avancei ainda mais tigem do trânsito, ou esborrachados em trans-
e perguntei-lhe – de rajada – se vivia com a famí- portes apinhados. Sabemos que no Paquistão
into-me cansado”, deve ser a queixa lia, se achava o seu trabalho entusiasmante, en- há instabilidade, que no Iraque se morre, mas
mais comum que se ouve num con- fim, se preenchia o seu tempo livre com qualquer – em muitos casos – nem conhecemos todas as
“Ssultório médico. Invariavelmente, o actividade distinta da televisão…Surpreendida, a pessoas “lá do prédio”. Dominamos cada vez
coração é o primeiro que se apresenta, na lis- jovem Oficial, lá balbuciou que era asilante (os mais as tecnologias da informação, mas comu-
ta dos suspeitos, para tão terrível queixa – por seus pais moravam na província), que gostava nicamos cada vez menos. Temos cada vez mais
isso, ao longo dos anos, tornei-me um perito do seu trabalho, mas que ainda se sentia pouco medo do mundo à nossa volta (porque vivemos
nos “cansaços”. Senão veja- rodeados de desconhecidos
mos: existe o cansaço no pei- e o Homem sempre temeu o
to, o cansaço nas pernas, o que não conhece…). Ficámos,
cansaço nos braços, o cansa- por tudo isto, cada vez mais
ço do tipo “não aguento um agressivos uns com os outros
gato pelo rabo”, um cansaço – sendo a ostentação a forma
“para me mexer”, o cansaço mais divulgada (e boçal) de
“que dá medo” e não menos dizer “afasta-te, eu sou muito
importante, porque deveras melhor do que tu!”
aterrador para o médico – o Também eu estou cansado
cansaço “que nem sei bem de muitas vezes. Quando estou
onde me vem…” cansado procuro o alívio de
Outros clínicos, porventura um poema. No abraço dos
de outras áreas, acrescentariam meus filhos, revejo, todos os
muitos outros cansaços a esta dias, a minha verdadeira di-
já longa e fastidiosa lista. Na mensão, as minhas verdadei-
verdade, é relativamente fácil ras certezas. Pois se o homem
excluir o cansaço de causa é frágil – e eu, mais do que
cardíaca. Um ou dois exames muitos, conheço bem essa fra-
complementares e já está! O queza – temos todos que en-
cardiologista diligente avança com um: “o seu à vontade num ambiente eminentemente mascu- contrar, ao longo da vida, formas de deixar cons-
coração é normal”, ou um mais cuidadoso: “não lino e, finalmente, que na verdade tinha poucos truções que resistam ao tempo e estas implicam,
parece ser ele (o coração) o culpado do seu interesses e ainda menos amigos…Expliquei-lhe, sempre, a conquista do coração dos outros.
cansaço”. O problema é convencer o potencial logo ali e agora, que assim não ia conseguir tratar- A consulta não acabou por aqui. Recomen-
cardíaco da ausência de doença. A maior parte se. Recomendei-lhe que saísse. Se não tinha ami- dei-lhe, à maneira de receita “a tomar de 12 em
das vezes, este vai desconfiar da competência gos, devia sair a passeio…mesmo sozinha e por 12 horas”, um, ou dois livros de poetas insignes,
do clínico. Vai procurar outro que lhe arranje lugares novos. É que a tristeza, sei-o bem, tende que falam do vazio da vida e da conquista…Só
pelo menos um “prolapsozito” de uma qualquer a fermentar no silêncio da solidão e dos velhos então a deixei ir, sem saber se vai voltar, ou se a
válvula, que lhe explique o cansaço. Vai querer lugares e, ao invés, reage bem ao desafio físico do receita resultou?
mezinhas, vai querer – em suma – uma doença desconhecido que a amedronta…Deve ser por Foi esquisita esta consulta, vão dizer muitos
que lhe justifique a sensação de fraqueza, que isso, que todos os grandes pensadores do mundo dos que conhecerem estas palavras. Têm absolu-
no sentir prevalece… (e eu li alguns), fizeram uma grande viagem, par- ta razão. Nem eu sei bem porque lhe falei assim,
Foi exactamente assim com uma Sra. Oficial ticiparam em guerras, defenderam (muitas vezes teria sido bem mais fácil e menos custoso, em
que procurou os meus préstimos. Moça escor- com a vida) novos ideais e quase nunca se acha- tempo e esforço, passar-lhe um dos ansiolíticos
reita, com uma beleza moderna, que a farda ram satisfeitos com as suas próprias certezas…A da ordem estabelecida. Perdoarão. É que o silên-
não conseguia esconder. Já havia feito todos os alma precisa de desafios, como o corpo precisa cio causar-me-ia uma azia no espírito, que me é
testes, que os laboratórios de análises e muitos de pão e este parece-me ser um dos segredos da insuportável e, pior que tudo, teria sido uma fal-
médicos, entre os quais alguns cardiologistas verdadeira felicidade… ta de coragem que envergonharia os meus ante-
de renome, haviam ensaiado. Nada, o can- E tenho sincera compaixão. Compaixão de to- passados corajosos – que no céu dos justos, por
saço não passava. Repeti eu próprio ao longo dos os que não sentiram nunca o cheiro do vento certo, fiscalizam os actos dos vivos. Que bom é
de algumas visitas, outros tantos exames. Não na manhã, a vida nos olhos dos moribundos e a poder escrever e sentir, ao final do dia, que fize-
encontrei nada físico que justificasse o padeci- força, maior que a vida, que a música contém… mos bem e que combatemos a batalha certa. Por
mento da jovem. Muita, muita pena, daqueles que não compreen- isto estou agradecido. Todos os dias!
Avisado, por experiências anteriores, não ou- dem que a solidão pode abarcar toda a emoção Z
sei, desta vez, sugerir a esta paciente que poderia do mundo e que qualquer deserto pode dar fru- Doc
30 FEVEREIRO 2008 U REVISTA DA ARMADA