Page 26 - Revista da Armada
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Foto CTEN António Gonçalves Junot (1771-1813) assistiu, Notas:
impotente, à partida dos na- 1 Luís de Camões, Os Lusíadas, (Canto V, 50).
vios da Marinha que leva- 2 Etimologicamente ambos os nomes derivam de
ram a corte portuguesa para
o Brasil. Rezam as crónicas, palavras latinas, atlanticum e indicum, respectiva-
que este episódio está na ori- mente. O primeiro relaciona-se com o lugar onde
gem da famosa expressão habitavam os Atlantes, antigo povo da Mauritânia.
«ficar a ver navios», pois, pe- O termo atlante é também utilizado como sinónimo
los vistos, os franceses nada de pessoa forte, ou indivíduo que luta vigorosamen-
puderam fazer, a não ser vê- te. O segundo traduz algo relativo à Índia, no caso
-los partir. vertente o mar ou oceano. O mesmo que indiano.
Ainda de acordo com a Deste último derivou igualmente o vocábulo índigo,
lenda, é ao largo do Cabo que na Antiguidade era utilizado para designar toda
da Boa Esperança que o a panóplia de produtos oriundos da Índia, incluindo
Flying Dutchman (Holan- a própria pimenta e um corante vermelho de origem
dês Voador), um navio fan- mineral, que tinha como base o óxido de ferro. Pas-
tasma, cuja guarnição está sou, no entanto, a ser preferencialmente utilizado
Monumento ao Adamastor no miradouro de Santa Catarina em Lisboa. condenada a navegar para para dar nome ao anil, um corante azul extraído das
folhas da indigofera tinctoria. Sintetizado em 1826,
apreensão junto da maior potência maríti- todo o sempre, faz, regularmente, as suas é conhecido como anilina e passou a ser produzido
ma de então. Construído em Livorno, Itália, aparições13. industrialmente, sendo utilizado para tingir um sem
e lançado à água a 12 de Julho de 1896, ser- Refira-se, para terminar, que os mais recen- número dos mais variados produtos.
viu na Marinha entre 2 de Agosto de 1897 e tes navios da Marinha a dobrar o Cabo da Boa
16 de Novembro de 1933. Esperança foram a fragata Álvares Cabral e o 3 Ser gigante e lendário, conotado com a mitolo-
Muito possivelmente com o intuito de navio-escola Sagres, em 2007 e 2008, respec- gia greco-romana, criado por Luís de Camões para
exorcizar uma parte dos nossos temores co- tivamente. O primeiro passou pelo mítico pro- dar voz às forças da natureza que, na região do Cabo
lectivos, foi colocada no miradouro de Santa montório, do Atlântico para o Índico, a 4 de da Boa Esperança, obstaram ao avanço da armada
Catarina, à Calçada do Combro, em Lisboa, Setembro, aquando do périplo de África efec- de Vasco da Gama rumo à Índia.
uma representação em pedra, de inspiração tuado pelos navios do Standing NATO Maritime
camoniana, da espumosa e medonha figura Group 1 (SNMG 1). Quanto ao navio-escola Sa- 4 Personagem muito feia e monstruosa, que ha-
do Adamastor, que integra uma outra peque- gres, trilhou o mesmo caminho a 21 de Agosto bita no fim do mar, utilizada por Fernando Pessoa
na estátua, em bronze, de um pequeno e hirto do ano seguinte, passando em sentido contrá- para encarnar as dificuldades sentidas pelos navios
Marinheiro, que também pode ser visto como rio no dia 4 de Outubro, durante a viagem desi- de Bartolomeu Dias no Cabo da Boa Esperança. O
o próprio Luís de Camões tentando salvar Os gnada como Operação Mar Aberto 2008. termo é igualmente utilizado para conotar certas vi-
Lusíadas. Em conjunto, parecem dar corpo ao Conclui-se, assim, com o presente artigo, sões de carácter pejorativo, com coisas inanimadas
famoso poema de Fernando Pessoa: esta primeira série dedicada às principais re- (e.g. penhascos, nuvens, pedras, etc.).
ferências geográficas, que têm como pon-
to comum o facto de, na sua grande maio- 5 Muito embora não exista consenso quanto à ori-
O mostrengo que está no fim do mar ria, constituírem importantes símbolos para gem da lenda, o Preste João, à luz do imaginário eu-
Na noite de breu ergueu-se a voar; os Marinheiros. Aliás, desde que em tempos ropeu medieval, era tido como um soberano cristão,
À roda da nau voou três vezes, simultaneamente patriarca e rei, de quem se dizia ser
Voou três vezes a chiar, imemoriais o Mar se afirmou como forma de um homem justo e um governante generoso. Dizem-
E disse, «Quem é que ousou entrar vida, sempre existiu uma Linha, ou um Cabo, -nos as fontes coevas que este rei, tido como o Im-
Nas minhas cavernas que não desvendo, algo míticos, por vezes temidos, relativamente perador da Etiópia, quando fosse encontrado cons-
Meus tectos negros do fim do mundo?» aos quais os nautas manifestavam os seus mais tituiria um aliado precioso na luta contra os mouros.
E o homem do leme disse, tremendo, Por seu turno, o termo preste, que por vezes também
«El-Rei D. João Segundo!» genuínos receios. Hoje em dia, desmistificada surge como prestes, é uma corruptela do francês
boa parte dos infundados temores, a passagem prêtre, que significa padre ou sacerdote.
por estes lugares é sinónimo de homenagem
«De quem são as velas onde me roço? aos corajosos navegadores de antanho, que 6 Trata-se de um termo de origem persa, que en-
De quem as quilhas que vejo e ouço?» nos seus frágeis navios ousaram desafiar in- trou no léxico grego antigo para designar a região si-
Disse o mostrengo, e rodou três vezes, clementes perigos, constituindo igualmente tuada além do Indo, passando também, mais tarde, a
Três vezes rodou imundo e grosso, pretexto para alguns bons momentos de con- ser utilizado para referir o subcontinente indiano.
«Quem vem poder o que só eu posso, vívio a bordo.
Que moro onde nunca ninguém me visse 7 João de Barros, Ásia – Primeira Década, Lisboa,
E escorro os medos do mar sem fundo?», Agência Geral das Colónias, 1945, p. 93.
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!» António Manuel Gonçalves 8 Fontoura da Costa, Às portas da Índia em 1484,
Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1990, p. 38.
CTEN
am.sailing@hotmail.com 9 Houve aqui lapso, pois outras fontes confirmam
que a expedição liderada por Bartolomeu Dias lar-
Três vezes do leme as mãos ergueu, Agradecimentos: gou de Lisboa em 1487. Cf. António Galvão, Tratado
Três vezes ao leme as reprendeu, Ao CALM Saldanha Junceiro, que nos chamou a dos Descobrimentos, Lisboa, Livraria Civilização-
E disse no fim de tremer três vezes, -Editora, 1944, p. 131.
«Aqui ao leme sou mais do que eu: atenção para uma ambiguidade no artigo dedicado à
Sou um Povo que quer o mar que é teu; Linha Internacional de Data. Apesar de termos afirma- 10 Os Boers, também conhecidos como Africânde-
E mais que o mostrengo, que me do que a Terra se encontra dividida em 24 fusos horá- res, eram os descendentes dos colonos calvinistas que
a alma teme rios, na realidade estes totalizam 25, muito embora os se estabeleceram na região durante os séculos XVII
E roda nas trevas do fim do mundo, fusos contíguos M e Y, que cobrem apenas 7,5 graus e XVIII, sendo maioritariamente oriundos dos Países
Manda a vontade, que me ata ao leme, de longitude cada, possam, em termos horários, ser Baixos, mas também da Alemanha e da França. Devi-
De El-Rei D. João Segundo!»12 considerados apenas um só, pois têm exactamente a do a um certo isolamento, acabaram por desenvolver
Para nosso consolo, aquando das Invasões mesma hora, mas em dias consecutivos. uma língua própria, o africâner, derivada do flamen-
Francesas, foi deste miradouro, de magnífica go, ou holandês, que é, actualmente, um dos onze
vista sobre oTejo, que o General Jean-Andoche Ao CMG Leal de Faria, que nos alertou para o facto idiomas oficiais da África do Sul. Mais tarde, disputa-
de no mesmo artigo havermos escrito que, em relação ram a colonização do território aos Ingleses.
ao Meridiano de Greenwich, os fusos são positivos
para leste e negativos para oeste, quando, na realida- 11 Acrónimo de Associação Portuguesa de Trei-
de, sucede o contrário. no de Vela.
Ao 1TEN Santos Robalo, pela informação sobre o 12 Fernando Pessoa, «O Mostrengo» in A Men-
NRP Álvares Cabral neste artigo. sagem.
13 O Flying Dutchman tem sido fonte de inspira-
ção para diversos autores, nomeadamente o com-
positor alemão Richard Wagner (1813-1883) com a
ópera homónima composta em 1843, Edgar Allan
Poe (1809-1849) com The Narrative of Arthur Gor-
don Pym of Nantucket (1838), Emílio Salgari (1862-
1911) com Le novelle marinaresche di Mastro Ca-
trame (1894), bem como um sem número de filmes
como Pandora and the Flying Dutchman (1951),
protagonizado por Ava Gardner e James Mason, até
à mais recente sequela de Os Piratas das Caraíbas
– Nos Confins do Mundo (2007), com Johnny Depp
no principal papel.
26 JUNHO 2010 • Revista da aRmada