Page 30 - Revista da Armada
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HISTÓRIAS DA BOTICA (77)

 O Livro do Amor

  “…Ulisses abicara a sua nau (…numa                      pela calada da noite, nos aflitos… Sinto, tal       Sinto, com um peso crescente, que glo-
ilha…) que pertencia ao maior e mais feroz                como aquele herói mítico, que toda a minha        balmente falhei. Sei que muitos outros não
deles (…) o seu nome era Polifemo, e era filho            navegação nesta instituição foi influenciada      gostaram (…provavelmente a maioria). Peço
do deus marinho Poseidon e de uma ninfa cha-              por esta forma de escrita – sem máscaras - e      humildemente desculpa. Compreendam, por
mada Toosa. Tivesse Ulisses tido conhecimen-              pelo incómodo que isso terá causado a mui-        favor, que só poderá gostar daquilo que eu
to do parentesco divino do Ciclope solitário,             tos…mesmo quando não mo afirmaram di-             escrevo quem tem uma parte de si ainda va-
talvez se tivesse feito à vela sem se meter com           rectamente.                                       zia, a mesma que nos aproxima daquilo que
ele, pois que tinha ainda muito que navegar                                                                 não se vê – só se sente – e eu, humilde eu,
através dos mares, e a coisa que menos dese-                Coloquei nestas histórias, ao longo de dias,    só sei escrever de coisas simples, nunca tive
java neste mundo era atrair a inimizade daque-            meses e anos, todo o meu ser. Nestes dias         arte para escrever de saberes transcenden-
la divindade. Ignorando esses factos, contudo,            houve momentos em que chorei o Tejo, por-         tais, métodos extraordinários ou orientações
decidiu examinar de mais perto o monstro de               que há dias em que a alma transborda (nesses      perfeitas. O meu Livro do Amor, em oposi-
um olho só; e desta sua curiosidade advieram              dias tocamos a vida, não a sentimos, vivemos,     ção, está cheio das insuficiências da ciência,
todas as situações aflitivas com que se veria a           mas também escrevemos por nós e pelos ou-         dos azares do mundo e da luta para encher
braços durante a sua viagem….”                            tros). Noutros dias, sorri o sorriso maior que a  as almas tristes, que sobrevivem apesar de
                                                          vida tem. Esses dias são muitos e têm muitas      tudo. Não sei escrever para quem já definiu
                               In a Odisseia de Homero …  caras. Têm a cara de um velho fuzileiro que       todas as suas certezas, todas as suas verda-
                                                          coleccionou todas as histórias e acenava, em      des. Se a esses porventura ofendi, não foi
OLivro do Amor é longo e sem interes-                     determinada cerimónia, um cartaz acima de         por mal, compreendam que eu sou apenas
         se. Está cheio de instruções, gráficos           um sorriso desdentado que dizia “Doc”, em
         e informações                                    letras gordas… Há, também, a face de um                                  menos perfeito. Conti-
que não interessam à                                      determinado militar que me abraçou sem-                                  nuo ainda a procurar
maioria. No entanto,                                      pre que a vida pesava mais que toda a água                               o meu arquipélago se-
quem perder um mo-                                        do mar e tenho, ainda, o sorriso agradecido                              guro num mar revolto,
mento perceberá que                                       da mulher do camarada que já partiu e que                                de cor azul pérola, que
o Livro do Amor está                                      guardou uma determinada história da botica                               tanto me apaixona…
cheio de música – ali-                                    no mesmo lugar, muito secreto, onde o seu
ás é de onde vem toda                                     marido ainda navega…E muitas, muitas ou-                                    Tenho de partir, te-
a música….O Livro do                                      tras gentilezas, particularmente de leitores pe-                         nho de partir…porque
Amor também tem lá-                                       quenos e perdidos, e até de um determinado                               corria o risco de can-
grimas e poesia, por-                                     militar brasileiro, que, de tão imerecidas, aqui                         sar o leitor com tantas
que as poesias são lá-                                    tenho vergonha de revelar…                                               destas histórias, sem
grimas íntimas, sob a                                                                                                              princípio, meio ou fim
forma física que as pa-                                     Carrego, no entanto, a dor de nunca ter                                (certamente verdadei-
lavras permitem. E eu                                     agradecido, em presença física, ao marinhei-                             ras lamechices, para
amo a vida, no profun-                                    ro que publicamente na Revista elogiou as                                muitos), porque o Livro
do do meu ser. É que o                                    histórias e desejou tudo de bom que a escri-                             do Amor nunca acaba,
Livro do Amor contém a minha vida desde os                ta pode conter. Guardo esse escrito no peito,                            nunca estará completa-
tempos imemoriais em que me reconheço e,                  mais ou menos no mesmo sítio onde colocaria       mente escrito… Serão sempre histórias em
também, contém a vida de todos aqueles com                as medalhas, que não mereci…Para esse mari-       que os pequenos continuarão a reconhecer-
que me cruzei e amo…                                      nheiro, daqui vai, uma vez mais, o meu agra-      -se, a vencer apesar de tudo e a acreditar…
                                                          decimento mais sentido… Outras pessoas na         no mesmo exercício a que eu próprio me
  Todos os dias escrevo qualquer coisa no Li-             Revista da Armada, sempre estiveram lá, numa      imponho todos os dias… Acharei, estou cer-
vro do Amor porque, já se compreenderá, o                 mão invisível, que tanto me ajudou. Há ami-       to, outros pergaminhos, onde, no silêncio
Livro do Amor só se escreve no mais profun-               gos que não têm preço, nem as palavras são        do anonimato, esta escrita possa crescer…
do de nós – naquele sítio de silêncios que se             capazes de conter tanta emoção…e a amizade        Neles, estou seguro, a Marinha também está
chama alma. Esta é uma entidade mística que               é o maior capítulo do Livro do Amor.              sempre presente, pois não se retira a Mari-
alguns dizem vai para o Céu quando morre-                                                                   nha de dentro do marinheiro…Ela faz parte
mos, mas eu posso afirmar aos meus leitores,                                                                dele e das coisas certas da vida, o ar, a água,
poucos e pacientes, que escrever no Livro do                                                                o sal, a alegria e o medo…
Amor também nos pode aproximar do Céu,                                                                        O Livro do Amor pode ser cantado. Às
ainda em vida…                                                                                              vezes tem o som épico da guerra, presente
                                                                                                            nos Lusíadas, outras o sarcasmo de Eça de
  Vou deixar de escrever na Revista da Arma-                                                                Queiroz, outras ainda, o desencanto de Lobo
da estes pequenos excertos das muitas pági-                                                                 Antunes. Frequentemente, gosto de lhe dar
nas que já escrevi e ainda tenho para escrever.                                                             o tom doce do Novo Testamento. Todos os
É que, compreende o leitor amigo, o Livro do                                                                tons são bons no Livro do Amor que cada
Amor é longo, maçador e forçosamente ínti-                                                                  um escreve como pode e sabe…
mo. Não consigo escrevê-lo de outra forma.                                                                    Vou sair agora, vou ali para um sítio sosse-
A escrita saberia a plástico velho, perdido na                                                              gado em Belém. Tenho pressa de continuar a
praia, mastigado pelo irmão de Polifemo, o                                                                  escrever o livro, que escrevo na alma e ás ve-
Ciclope de um um-só-olho – um dos poucos                                                                    zes no papel – O meu Livro do Amor.
que Ulisses terá deixado escapar na sua odis-
seia marítima e cujos descendentes, numero-                                                                                                                    
sos, ainda deambulam junto ao mar, caçando                                                                                                              Doc

30 AGOSTO 2010 • Revista da aRmada
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