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HISTÓRIAS DA BOTICA (77)
O Livro do Amor
“…Ulisses abicara a sua nau (…numa pela calada da noite, nos aflitos… Sinto, tal Sinto, com um peso crescente, que glo-
ilha…) que pertencia ao maior e mais feroz como aquele herói mítico, que toda a minha balmente falhei. Sei que muitos outros não
deles (…) o seu nome era Polifemo, e era filho navegação nesta instituição foi influenciada gostaram (…provavelmente a maioria). Peço
do deus marinho Poseidon e de uma ninfa cha- por esta forma de escrita – sem máscaras - e humildemente desculpa. Compreendam, por
mada Toosa. Tivesse Ulisses tido conhecimen- pelo incómodo que isso terá causado a mui- favor, que só poderá gostar daquilo que eu
to do parentesco divino do Ciclope solitário, tos…mesmo quando não mo afirmaram di- escrevo quem tem uma parte de si ainda va-
talvez se tivesse feito à vela sem se meter com rectamente. zia, a mesma que nos aproxima daquilo que
ele, pois que tinha ainda muito que navegar não se vê – só se sente – e eu, humilde eu,
através dos mares, e a coisa que menos dese- Coloquei nestas histórias, ao longo de dias, só sei escrever de coisas simples, nunca tive
java neste mundo era atrair a inimizade daque- meses e anos, todo o meu ser. Nestes dias arte para escrever de saberes transcenden-
la divindade. Ignorando esses factos, contudo, houve momentos em que chorei o Tejo, por- tais, métodos extraordinários ou orientações
decidiu examinar de mais perto o monstro de que há dias em que a alma transborda (nesses perfeitas. O meu Livro do Amor, em oposi-
um olho só; e desta sua curiosidade advieram dias tocamos a vida, não a sentimos, vivemos, ção, está cheio das insuficiências da ciência,
todas as situações aflitivas com que se veria a mas também escrevemos por nós e pelos ou- dos azares do mundo e da luta para encher
braços durante a sua viagem….” tros). Noutros dias, sorri o sorriso maior que a as almas tristes, que sobrevivem apesar de
vida tem. Esses dias são muitos e têm muitas tudo. Não sei escrever para quem já definiu
In a Odisseia de Homero … caras. Têm a cara de um velho fuzileiro que todas as suas certezas, todas as suas verda-
coleccionou todas as histórias e acenava, em des. Se a esses porventura ofendi, não foi
OLivro do Amor é longo e sem interes- determinada cerimónia, um cartaz acima de por mal, compreendam que eu sou apenas
se. Está cheio de instruções, gráficos um sorriso desdentado que dizia “Doc”, em
e informações letras gordas… Há, também, a face de um menos perfeito. Conti-
que não interessam à determinado militar que me abraçou sem- nuo ainda a procurar
maioria. No entanto, pre que a vida pesava mais que toda a água o meu arquipélago se-
quem perder um mo- do mar e tenho, ainda, o sorriso agradecido guro num mar revolto,
mento perceberá que da mulher do camarada que já partiu e que de cor azul pérola, que
o Livro do Amor está guardou uma determinada história da botica tanto me apaixona…
cheio de música – ali- no mesmo lugar, muito secreto, onde o seu
ás é de onde vem toda marido ainda navega…E muitas, muitas ou- Tenho de partir, te-
a música….O Livro do tras gentilezas, particularmente de leitores pe- nho de partir…porque
Amor também tem lá- quenos e perdidos, e até de um determinado corria o risco de can-
grimas e poesia, por- militar brasileiro, que, de tão imerecidas, aqui sar o leitor com tantas
que as poesias são lá- tenho vergonha de revelar… destas histórias, sem
grimas íntimas, sob a princípio, meio ou fim
forma física que as pa- Carrego, no entanto, a dor de nunca ter (certamente verdadei-
lavras permitem. E eu agradecido, em presença física, ao marinhei- ras lamechices, para
amo a vida, no profun- ro que publicamente na Revista elogiou as muitos), porque o Livro
do do meu ser. É que o histórias e desejou tudo de bom que a escri- do Amor nunca acaba,
Livro do Amor contém a minha vida desde os ta pode conter. Guardo esse escrito no peito, nunca estará completa-
tempos imemoriais em que me reconheço e, mais ou menos no mesmo sítio onde colocaria mente escrito… Serão sempre histórias em
também, contém a vida de todos aqueles com as medalhas, que não mereci…Para esse mari- que os pequenos continuarão a reconhecer-
que me cruzei e amo… nheiro, daqui vai, uma vez mais, o meu agra- -se, a vencer apesar de tudo e a acreditar…
decimento mais sentido… Outras pessoas na no mesmo exercício a que eu próprio me
Todos os dias escrevo qualquer coisa no Li- Revista da Armada, sempre estiveram lá, numa imponho todos os dias… Acharei, estou cer-
vro do Amor porque, já se compreenderá, o mão invisível, que tanto me ajudou. Há ami- to, outros pergaminhos, onde, no silêncio
Livro do Amor só se escreve no mais profun- gos que não têm preço, nem as palavras são do anonimato, esta escrita possa crescer…
do de nós – naquele sítio de silêncios que se capazes de conter tanta emoção…e a amizade Neles, estou seguro, a Marinha também está
chama alma. Esta é uma entidade mística que é o maior capítulo do Livro do Amor. sempre presente, pois não se retira a Mari-
alguns dizem vai para o Céu quando morre- nha de dentro do marinheiro…Ela faz parte
mos, mas eu posso afirmar aos meus leitores, dele e das coisas certas da vida, o ar, a água,
poucos e pacientes, que escrever no Livro do o sal, a alegria e o medo…
Amor também nos pode aproximar do Céu, O Livro do Amor pode ser cantado. Às
ainda em vida… vezes tem o som épico da guerra, presente
nos Lusíadas, outras o sarcasmo de Eça de
Vou deixar de escrever na Revista da Arma- Queiroz, outras ainda, o desencanto de Lobo
da estes pequenos excertos das muitas pági- Antunes. Frequentemente, gosto de lhe dar
nas que já escrevi e ainda tenho para escrever. o tom doce do Novo Testamento. Todos os
É que, compreende o leitor amigo, o Livro do tons são bons no Livro do Amor que cada
Amor é longo, maçador e forçosamente ínti- um escreve como pode e sabe…
mo. Não consigo escrevê-lo de outra forma. Vou sair agora, vou ali para um sítio sosse-
A escrita saberia a plástico velho, perdido na gado em Belém. Tenho pressa de continuar a
praia, mastigado pelo irmão de Polifemo, o escrever o livro, que escrevo na alma e ás ve-
Ciclope de um um-só-olho – um dos poucos zes no papel – O meu Livro do Amor.
que Ulisses terá deixado escapar na sua odis-
seia marítima e cujos descendentes, numero-
sos, ainda deambulam junto ao mar, caçando Doc
30 AGOSTO 2010 • Revista da aRmada