Page 19 - Revista da Armada
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Pareceóbviaavisãopolíticaeaestratégiade contestação da legitimidade da jovem dinastia Mas a actividade marítima de exploração para
afirmação, para a qual confluíam a conquista de Avis. Estes rumores chegaram ao conheci- sul não foi retomada de imediato, talvez por-
de Ceuta e as explorações marítimas doAtlân- mento de D. Duarte, em 1436, através de um que, apesar do exílio voluntário, tinha que dar
tico que consubstanciavam o domínio do Gol- prelado português, Abade de Florença, e caí- atenção a alguns assuntos políticos. Nas cortes
fo das Éguas. E esta estratégia tinha natural- ram na corte como uma verdadeira bomba. A discutia-se a entrega de Ceuta para resgatar o
menteumretornoeconómiconosrendimentos possibilidade de imediatamente lançar nova infante D. Fernando, D. Duarte morreu logo em
do comércio próprio e do que passava pelos operação no Norte de África foi uma tentativa 1438, poucos meses depois da tragédia, e era
seus portos. D. João I entendeu-o desde muito de voltar a obter o efeito positivo que resultara preciso acompanhar a regência onde se dispu-
cedo, e o infante D. Henrique foi o filho esco- da conquista de Ceuta, confiando no desígnio tavam o seu irmão D. Pedro e a rainha viúva,
lhido para concretizar o seu projecto. divino e mostrando à cristandade os nobres Dª Leonor. Havia, no fundo, um conjunto de
Depois da viagem de Gil Eanes em 1434, objectivos da coroa de Portugal. A expedição tarefas que certamente ocupavam o seu espí-
seguem-se outras, cada vez mais para sul, al- deu-se portanto com a anuência e o patrocínio rito e mobilizavam esforços que diminuíam as
cançando o chamado rio do Ouro e Pedra da do rei D. Duarte e de muitos dos nobres que possibilidades de retomar as expedições marí-
Galé, em 1436, comAfonso Gonçalves Baldaia. anteriormente se tinham manifestado contra timas. Contudo, em 1441, Nuno Tristão alcan-
Depoisvemuminterregnodealgunsanos,que essa guerra. Nomeadamente o infante D. Pe- çava o Cabo Branco embarcado numa caravela
coincidem com a expedição de 1437 contra a dro, que recomendara a saída de Ceuta, mas (é a primeira referência que temos da presença
cidade de Tânger, que terminou num trágico que agora aprovava também esta operação. de uma caravela, na costa africana), e seguem-
fracasso de que resultou o cativeiro do infante Infelizmente, contudo, o nível de participação se outras expedições periódicas, agora já com
D. Fernando, o filho mais novo de D. João I e da nobreza e a capacidade de mobilização de objectivos comerciais, fosse pela possibilidade
Dª Filipe de Lencastre. É vulgar atribuir a res- meios não foi igual à de 1415. As forças eram de recolha de escravos, fosse pelo próprio co-
ponsabilidade deste desastre à obsessão do in- insuficientes, e tiveram de ser desembarcadas mércio que começava a ter alguma expressão.
fante D. Henrique, que teima-
va em sucessivas investidas Quando faleceu, em 13 de
contra a muralha de Tânger, Novembro de 1460, com a ida-
deixando-se cercar pelos refor- de de 66 anos, sob a sua orien-
ços de socorro que vieram de tação e administração tinha
Fez. É verdade que o combate sido explorada a costa ociden-
decorreu dessa forma absurda tal africana até à Serra Leoa,
e que o Infante descurou todos tendo estabelecidos diversos
os avisados conselhos, que lhe locais específicos de trato e co-
deram outros fidalgos mais mércio, do qual tinha a conces-
velhos e mais experientes nas são régia. Estavam descobertas
coisas da guerra. É ainda ver- as ilhas de Cabo Verde; o Ar-
dade que desobedeceu explici- quipélago da Madeira fora di-
tamente ao regimento dado por vidido em capitanias, povoado
D. Duarte, descorando aspectos e começava a ser explorado; o
tácticos tão óbvios como o nun- mesmo acontecendo com al-
ca perder a ligação com os na- gumas ilhas dos Açores. Con-
vios para poder reembarcar se seguiu construir a maior casa
estivesse em perigo. A respon- senhorial do país, preparada
sabilidadetácticadaderrotaou Visão mítica da Escola de Sagres. para passar em herança para
dos aspectos mais gravosos que seu sobrinho D. Fernando, o
essaderrotaassumiupodemser-lheimputados, em Ceuta, fazendo o percurso pela montanha segundo filho de D. Duarte.
mas a expedição correspondeu a um objectivo até Tânger, onde chegaram em condições pre- Viveu uma vida intensamente vivida, com
régio e nacional muito claro, e foi decidida em cárias.Ainsistência desastrosa de D. Henrique momentos de entusiasmo, como o de Ceuta,
Lisboa,comrazõesqueajustificamplenamente. completou o quadro da tragédia, cujos resulta- ou de desânimo como o de Tânger, não sendo
Recordemos que o reconhecimento formal dos são conhecidos. fácil caracterizá-la de forma tão sumária como
daindependênciadePortugal,porpartedorei O Infante – que se revelava um zeloso orga- a que exige o curto tempo desta apresentação.
de Castela, ocorreu apenas em 1432, quase no nizadoreadministradordeumprojectolentoe Aobra e a personalidade de um homem com a
final da vida de D. João I. Em 1433 D. Duar- trabalhoso, como eram as navegações atlânti- dimensão do infante D. Henrique ultrapassam
te herdava a coroa e, imediatamente, o irmão cas; que era, igualmente, um notável “homem essa possibilidade. Concluo reforçando o pa-
procurou retomar a guerra no Norte de Áfri- de negócios”, com uma capacidade notável de pel decisivo que teve no arranque da expansão
ca, pressionando-o nesse sentido, mas nunca gerir e acrescentar o seu património pessoal e portuguesa.As navegações henriquinas signi-
logrando a aprovação de qualquer operação da Ordem de Cristo, não hesitando em tomar ficaram um lento percurso, feito com perseve-
concreta. Sucede, no entanto, que um conjun- conta e desenvolver actividades até aí tidas rança e muita coragem, onde se desvendaram
to de circunstâncias internacionais empurra- como impróprias de gente nobre, como eram segredos ciosamente guardados pela natureza,
ram o país para um beco sem saída, de que a as saboarias do reino, ou o negócio do óleo dos onde se venceram adversidades terríveis, algu-
guerra contra os mouros podia ser uma solu- lobos-marinhos – mostrava uma enorme im- mas delas resultantes de preconceitos e da falta
ção. Domingos Maurício explicou a situação prudênciaeprecipitaçãonaconduçãodaguer- de conhecimento. Mas foi esta a via que levou
de forma brilhante num pequeno texto, que ra. A mesma impetuosidade que revelara em o homem da Idade Média à modernidade. O
publicou em 1960, onde chama a atenção para Ceuta, arriscando a vida de forma quase gra- Infante precisou certamente da chama intensa
as condições em que Castela manobrava jun- tuita,nomeiodemouros,voltavaamanifestar- que alimenta o desejo profundo e incansável
to do recém-reunido Consílio de Basileia, fa- se em frente às muralhas de Tânger, onde se de vencer, tendo sempre presente a divisa que
zendo valer a sua posição através do Bispo de deixou cercar, de forma absurda e apesar dos mandou gravar no seu túmulo do Mosteiro da
Burgos, D. Afonso de Cartagena. Em termos sucessivos avisos e das recomendações escri- Batalha:Talantdebienfaire (talante[vontade]de
práticos, o Consílio contestou um requerimen- tas que tinha recebido do rei. bem fazer). Uma frase que ainda hoje invoca-
to português sobre as Canárias, mas alargou No regresso de Tânger não teve coragem mos nesta casa.
o alcance da sua argumentação a uma recusa paravirenfrentaracorteerefugiou-senoAlgar-
do direito de conquista no Norte de África e à ve,ondepassouaresidirquasedefinitivamente.
J. Semedo de Matos
CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 2010 19