Page 17 - Revista da Armada
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ram ao país. Regista-se numa coincidência in- D.Duarte–oirmãomaisvelho–estavades- pectos mais significativos da preparação da
teressantequefoientregueparaamamentação tinado a ser rei de Portugal e tinha a sua posi- expedição a Ceuta, comandada pelo próprio
a Mécia Lourenço, casada com Vasco Gonçal- ção e património garantidos, mas D. João quis rei, acolitado pelos seus três filhos mais velhos
ves de Almeida. E sabe-se desta curiosidade, dotarosdoisfilhosqueselheseguiamdeduas e, especialmente por D. Pedro e D. Henrique,
porque este casal de servidores régios veio a casas senhoriais de grande dimensão, proven- que prepararam as armadas em Lisboa e no
integrar a casa do próprio Infante, merecen- do-as de terras, rendimentos e meios adminis- Porto. Segundo o cronista Zurara, a ideia da
do um cuidado e atenção especiais, que foi ao trativos e militares de grande vulto. D. Pedro conquista nasce dum contexto em que os três
pontodelhesconsentirsepulturanoConvento recebeu propriedades na região da Beira Lito- príncipes – como qualquer outro jovem mem-
de Cristo em Tomar, com a expressa indicação ral, entre Penela e Aveiro, enquanto D. Henri- bro da nobreza na Idade Média – deveriam ser
na lápide funerária de que foram os amos de que ficava com os seus domínios na faixa in- armadoscavaleiros,sendotradicionalqueessa
D. Henrique. É, aparentemente, um porme- terior da Beira Alta, prolongando-se ao longo cerimóniativesselugarcomapompaevisibili-
nor sem importância, mas confirma o zelo do do vale do Mondego até Celorico da Beira e dadeadequada.Paraafamíliarealportuguesa,
Infante na protecção aos seus servidores, con- Seia. Naturalmente que o rei tinha uma estra- etendoemcontaanecessidadedeafirmaçãojá
dição importante do bom funcionamento de tégia definida, entregando aos seus dois filhos referida, tal acto tinha uma importância acres-
uma imensa empresa, multifaceta- cida. A possibilidade de ser feita na
da e complexa (como veremos), que sequência de uma operação militar
dirigiu até à hora da morte. contra os mouros era algo de subli-
Sendo o quinto filho da famí- me. E, recordando que os filhos de
lia real – e vendo essa condição no D. João I eram apenas uma amostra
contexto dos costumes e regras da do universo da jovem descendência
Idade Média – não poderia espe- dos heróis de Aljubarrota, compre-
rar um futuro destacado e radioso, endemos todo o entusiasmo que
como acabou por acontecer. Mes- mereceu o projecto.
mo a morte prematura dos irmãos Mas estas operações custavam
mais velhos, deixando-o no terceiro verbas avultadíssimas, exigindo
lugar da linha varonil, não melhora- financiadores próprios que não se
ria muito a sua situação, não fora a moviam por impulsos guerreiros,
forma como el-rei seu pai entendeu plenos de significado, mas incertos
redistribuir o património da nobre- nos rendimentos. A partida para
za portuguesa, e dar à sua descen- Ceuta teve, certamente, outro tipo
dência directa uma posição de realce de motivações que a historiografia
e prestígio, reforçando com firmeza tem vindo a discutir, permitindo-me
a legitimidade da sua condição real. chamar a atenção para uma delas,
É preciso lembrar que D. João I era dada a relação estreita que tem com
um filho bastardo de D. Pedro, cujo a actividade dos navios e as condi-
protagonismo resulta das circuns- cionantes que lhe estão associadas.
tâncias em que faleceu o rei D. Fer- O controlo de um porto como Ceu-
nando, e a sua coroação foi feita pela ta era, acima de tudo, o controlo da
via da revolução e das armas, conso- porta do Mediterrâneo, onde pas-
lidada com a vitória numa batalha sava todo o comércio entre o mar
decisiva em Aljubarrota. interior e o Norte da Europa. Trata-
Toda a geração dos jovens fidal- va-se de um local onde era possível
gos portugueses, nascidos neste fi- manter uma pequena força naval,
nal do século XIV ou princípio do ao abrigo de intempéries, capaz de
século XV, ficará marcada pelo am- avistar com grande antecedência a
biente político em que decorre a pas- navegação que se aproxima, e exer-
sagem da primeira para a segunda Infante D. Henrique cendo o seu poder de controlo pela
dinastia, com as incertezas da crise Gomes Eanes de Zurara – Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné. possibilidade de partir em vanta-
de 1383-85 e a guerra com Castela que se lhe o eixo mais vulnerável à ameaça castelhana, e gem táctica para o ataque a qualquer navio
seguiu. Os filhos de D. João I – a ínclita gera- dotando-os justificadamente das melhores ca- de que se quisesse impedir a passagem. E a
ção – são apenas uma pequena amostra de pacidades militares e económicas. E tudo isso “vantagemtáctica”éumconceitoomnipresen-
todos os filhos dos heróis deAljubarrota, cria- foi feito em nome da precariedade da paz com te na milenar história do tráfico marítimo e da
dos e educados à luz de valores sólidos, com a vizinha Castela, que, formalmente, só reco- guerra no mar, variando com as características
modelos muito intensos e de grande consis- nheceu a independência portuguesa em 1432. dosnavios,masmantendo-sedeterminantena
tência moral (como foi a figura de Nuno Ál- Em 1389 tinha sido acordada uma trégua de manobra e na escolha dos pontos importantes
varesPereira).Osdoismaisvelhos–DªBranca cincoanos,renovadaem1393pormaisquinze, a ocupar ou onde construir os portos. Em 1415
e D. Afonso – morreram relativamente cedo, mas estes acertos eram muito frágeis e foram a “vantagem táctica” era dada pelo posiciona-
e os três irmãos que se lhe seguiam, tiveram violados por diversas vezes. Só a 31 de Outu- mento que melhor permitia a utilização dos
uma educação esmerada e modular na quali- brode1411foiassinadoemAyllónumTratado elementos da natureza (vento e corrente), ma-
dade de filhos de um rei que se quer fazer res- de Paz provisório, que deu alguma segurança ximizando o potencial de combate disponível.
peitar internacionalmente, numa Europa que aos portugueses, e permitiu aliviar a vigilância Nesse sentido, Ceuta era um ponto impor-
não se esqueceu que chegara ao trono como defensiva. E a nobreza em geral, cujos rendi- tante, e a sua conquista não era mais do que
um usurpador. Um usurpador que merecera mentos lhe vinham sobretudo dos serviços da o estender para sul do espaço marítimo sob
uma especial protecção de Deus na vitória de guerra, ficava disponível para outras vias de controlo português, criando melhores condi-
Aljubarrota–oqueeraparticularmenteimpor- actuação,estandocriadasascondiçõesparaca- ções para o exercício de um tipo de soberania
tante no contexto da época – mas que teria de nalizar as suas energias noutro sentido, como que era um privilégio e uma singularidade
construir o seu próprio prestígio com actos e foi a expansão ultramarina de que o primeiro das gentes que viviam na costa ocidental da
procedimentos concretos, a partir de uma po- passo foi dado em Ceuta no ano de 1415. Península Ibérica – uma singularidade que
sição desfavorável. Conhecem-se com algum pormenor os as- os fez querer ser independentes no tempo de
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