Page 18 - Revista da Armada
P. 18
Afonso Henriques e que lhes deu uma energia antes da sua chegada. Era, todavia, evidente de contrariar no regresso. Em navios de pou-
redobrada para assim se manterem em 1383. que Ceuta iria viver num sobressalto constan- ca autonomia e com uma costa sem meios de
Depois de vários anos de aturados prepa- te sendo de prever a necessidade de a socorrer reabastecimento, é fácil de entender a angústia
rativos, a armada partiu para o sul a 25 de ou reabastecer através do mar, de forma siste- dos marinheiros, cientes que um dia no cami-
Julho de 1415, sem que a maioria do pessoal mática.Efoiessacircunstânciaqueconcentrou nho do sul pode significar três, quatro, cinco
embarcado soubesse ao que ia. Os objectivos no Algarve, no porto de Lagos, um conjunto ou mais para regressar a casa.
tinham sido mantidos em segredo, apesar do de meios navais, que normalmente estariam
enorme aparato que representava a reunião dispersos, e que protagonizaram o fervilhar Temos a noção clara de que os anos que me-
de tão inusitada quantidade de navios e gen- de viagens de exploração do Atlântico, com deiam entre 1418 e 1434 foram anos de apren-
te. Os mouros de Ceuta não foram surpreen- uma expressão imediata no reconhecimento dizagem do Atlântico, afastando-se os navios
didos na manhã de 21 de Agosto, quando a do Arquipélago da Madeira por João Gonçal- cada vez mais da costa e buscando soluções
primeira vaga de assalto, com o Infante à fren- ves, o Zarco (ou Zargo), e Tristão Vaz Teixeira, de vários tipos: soluções a nível da construção
te, desembarcava na praia diante da porta de ambos criados da casa do Infante. naval, concebendo navios adequados, como
Almina, mas não o souberam com a antece- Zurara diz-nos que “doze anos continua- vieram a ser as caravelas; soluções no âmbi-
dência necessária para prepararem a defesa, e dos” mandou o Infante que os seus navios to da ciência náutica, no sentido de descobrir
obterem os reforços indispensáveis para deter corressem essa costa africana a caminho do formas de posicionamento no mar; e soluções
a avassaladora onda de assalto portuguesa. sul, passando além de um mítico cabo que que facilitassem o regresso a Lagos, por uma
D. Henrique combateu durante todo o dia, e ainda hoje se chama de Bojador. E – continua via que não a dos bordos sucessivos, contra
os relatos que até nós chegaram mos- ventos e correntes ou aproveitando brisas in-
tram a impetuosidade com que o fez,
por vezes tentando a sorte em rasgos certas junto a terra. Parece evidente
de alguma imprudência. Acidade não que este último problema se resolveu
ofereceu grande resistência e, a 22 de numa volta alargada pelo mar aber-
Agosto, mesmo a alcáçova foi aban- to, cada vez mais longe de terra, ao
donada, deixando tudo à mercê dos ponto de em 1427 (muito antes de Gil
portugueses. Eanes ter passado o Bojador), um tal
D. João I deixou uma guarnição de Diogo de Silves (ou Sines) ter avistado
2500 homens para defender o local, e a ilha de Santa Maria, noArquipélago
retirou-se no princípio de Setembro, dos Açores, como comprovamos por
desembarcando em Tavira e regres- inscrição que sobre isso consta num
sando a Lisboa por terra. Mas não sem mapa catalão, desenhado em 1439 por
antes ter procedido a um conjunto de Gabriel Valsequa.
acções administrativas onde se con-
tam a intitulação dos infantes D. Pe- Desta intensa actividade marítima
dro e D. Henrique, respectivamente, que decorreu a partir de 1418, sob a
como duque de Coimbra e duque de tutela do infante D. Henrique, e levada
Viseu, conferindo uma dignidade aos a cabo sobretudo por servidores seus
seus domínios que nunca tinha sido ou cavaleiros da Ordem de Cristo, ti-
atribuída em Portugal. D. Henrique ramos duas conclusões. Uma delas é
seria ainda premiado com o senhorio a evidência de uma tentativa de domí-
da Covilhã, de uma forma cujos por- nio sobre o espaço marítimo, chamado
menores não são bem conhecidos, mas na altura “Golfo das Éguas”, limitado
que aparece na documentação desde a norte pelo Algarve e a sul pela costa
1516: “duque de Viseu e senhor da ocidental africana. A outra é a de que
Covilhã”. Este benefício, que já não foi Costa Ocidental Africana. decorre um importante processo de
aprendizagem do mar e da navega-
extensivoaoinfanteD.Pedro,marcaumadife- o cronista – “depois de doze anos, fez o Infan- ção, talvez, não tão sistemático como
rença de postura na atribuição de privilégios, te armar uma barca, da qual deu capitania a alguns investigadores quiseram supor,
que cada vez mais se desequilibraria a favor Gil Eanes, seu escudeiro, o qual, seguindo a mas persistente e contínuo.
de D. Henrique. Data desta mesma altura a viagem dos outros, tocado de aquele mesmo Foi esta aprendizagem, visível em objectivos
atribuição do encargo de “todas as cousas que temor não chegou mais além que às ilhas de saltos do saber náutico, que se entrevêem no
cumprem para a dita nossa cidade de Ceuta e Canária”. Seria, contudo, esse mesmo Gil Ea- meio de descrições despreocupadas feitas pe-
para a sua defesa”, facto que irá determinar o nes que no ano seguinte, de 1434, navegou los cronistas ou nos relatos de personagens que
futuro do Infante e do país. além Bojador, trazendo ao Infante as “rosas de andaram no mar, que levou a supor a existên-
O reino de Fez, sob cuja soberania se encon- Santa Maria”, colhidas naquele local. É difícil cia de uma Escola Náutica organizada em Sa-
trava a cidade antes de 1415, nunca se confor- entender que barreira mítica estaria associa- gres ou em Lagos, onde mestres cosmógrafos
mou com a perda, e sempre afrontou os portu- da ao Cabo Bojador, embora possa entender- e matemáticos, superiormente dirigidos pelo
gueses. De imediato, apenas conseguiu lançar -se como sendo apenas um limite psicológico, Infante, ensinavam pilotos e marinheiros. Hoje
pequenas flagelações a que o capitão D. Pedro para quem navega com vento e corrente fa- sabe-se que essa escola nunca existiu e conhe-
de Meneses conseguiu repelir com energia, voráveis, ao longo de uma costa árida e sem cem-se os contornos em que foi gerado o mito.
masem1418preparavaumaenormeforçami- abastecimento possível, sabendo que o regres- Não podemos negar, contudo, a aprendizagem
litar que deveria cercar e atacar a nova praça so será contra esse mesmo vento e corrente. progressiva: uma aprendizagem prática, feita
portuguesa. Foi nessa data que seguiu a pri- O caminho para o sul beneficiava dos ven- provavelmente no contexto corporativo da arte
meira esquadra de reforço, apesar de tudo, re- tos de noroeste e norte, associados à circula- dos pilotos, mas com um objectivo concreto de
duzidaporquesesoubequeoataquenãotinha ção atmosférica em torno do anticiclone dos levar os navios cada vez mais longe, alargado
grandedimensão.Masaameaçarepetiu-seem Açores, e, mais para sul, sopram os alísios de a área de influência portuguesa. O país que
1419, e, nessa altura, passou a África o próprio nordeste que continuam a favorecer o avanço crescera “entre dois mares” – o Mediterrâneo
infante D. Henrique, com uma armada mais dos navios. Da mesma forma, a corrente das e o Atlântico – porque tinha uma costa onde
numerosaemelhorequipadaquetambémnão Canárias, ajuda nesse percurso, mas todos es- podiam abrigar-se os mercadores que circu-
entrou em combate porque o inimigo retirou ses elementos seriam contrariedades difíceis lavam do mar interior para o norte, alargava
a sua zona de acção e consolidava o domínio
deste comércio, na sua vertente sul.
18 DEZEMBRO 2010 • REVISTA DA ARMADA