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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (24)
Uma lei de ordenamento naval
No ano de 1557, pouco depois da to, para além da pressa dos preparativos sos de maior porte, mesmo para o comércio
morte de D. João III, Dª Catarina que ocuparam os meses de Julho e Agosto, e navegação europeia ou africana. Todos eles
promulgou um regimento para to- presumindo-se que o rei iria entregar o co- teriam de passar a andar armados, dispondo
dos os navios do reino, fossem eles privados mando a D. Duarte – filho bastardo de D. deartilhariaegentedeguerra,estabelecendo-
ou da coroa, indicando como deviam andar João III e tio de D. Sebastião –, conforme nos -se o número de peças de artilharia, espingar-
providos no mar, para não serem surpreen- diz Roiz Soares no seu Memorial. A chega- das, piques, lanças e soldados, dependendo
didos por inimigos que os dominassem e da a Lisboa da notícia sobre a “matança de do tamanho do navio. Uma nau com mais
tomassem com facilidade. Tinha esta medida S. Bartolomeu” acabou por suspender toda de 200 tonéis teria de dispor de três pedrei-
a ver com o crescimento do corso francês na a faina, uma vez que esse acontecimento ros (peças que lançavam pelouros de pedra),
costa atlântica, embora os seus efeitos pudes- representava uma derrota pesadíssima vários berços e outras peças, três quintais de
sem ser mais abrangentes e colmatar alguns dos huguenotes, esvaziando por completo pólvora, doze arcabuzes, lanças, piques e dar-
desvelos e negligências que eram cometidas os objectivos do rei. Absurdo foi o facto da dos. E deviam adquirir o material necessário,
por todos. Deduz-se que as medidas decre- armada ter ficado em Lisboa, de tal forma até ao final do ano de 1572, para que em 1573
tadas não foram cumpridas, ou tiveram um desprotegida e pouco cuidada, que no dia todos estivessem nas condições determina-
cumprimento diminuto, na medida em que 13 de Setembro “à meia noite, se começou das pela lei. Aparentemente todos teriam
em Novembro de 1571, o próprio vantagens em andar protegidos
rei fez novo regimento, onde co- desta forma, mas a verdade é que
meçava por referir a norma de se furtavam a estas despesas, usan-
1557, comentando como a mesma do dissimulações diversas que a lei
não tinha sido cumprida “tão in- procurava evitar. Segundo se sabe,
teiramente como devia e, por essa chegavam a carregar a artilharia em
causa, de alguns anos a esta parte, Lisboa, mostrando-a para inspec-
tinham os cossairos feito muitos ção, descarregando-a em Cascais
danos nas fazendas de meus vas- antes de seguir viagem.
salos”. A lei visava a protecção pró-
Entendo eu que, nesse tempo, pria dos navios de comércio, mas
o rei preocupava-se sobretudo tinha outros objectivos de mais
com o corso francês no Atlântico, largo alcance, com aspectos que
levado a cabo pelos huguenotes, poderiam ser estruturantes de
no contexto em que decorriam os uma nova Armada. Determina,
conflitos internos desse país eu- por exemplo que quem adquirir
ropeu. E a verdade é que, alguns artilharia de bronze bastará que
meses depois, mandou reunir tenha um terço das peças daque-
em Lisboa uma imensa esqua- les que apenas a tiverem em ferro.
dra, preparando artilharia, muni- Nesta altura a artilharia em ferro
ções e biscoitos para guarnecer os A nau “Chagas” que em 1565 partiu para a Índia integrando uma ainda não era fundida e a sua du-
navios, disponibilizando dinhei- armada comandada por Francisco de Sá – Livro das Armadas. rabilidade e eficácia, muito redu-
ro e mandando pagar o soldo à zida em relação à de bronze, de
“gente de guerra” que quisesse alistar-se, a levantar um vento palmelão, com tão des- forma que a lei favorecia os armadores que
perdoando a todos os homiziados que o fi- feita tormenta”, que quase todos os navios investissem em melhores peças, mas, sobre-
zessem. Aparentemente preparava-se uma foram atirados para terra, havendo uma tudo, fomentava a sua importação ou fabri-
grande expedição, para a qual se convo- nau grossa, ainda carregada de artilharia co, dotando a coroa de uma reserva militar
cavam todos os navios de todos os portos e munições, que ficou completamente des- sem custos acrescidos. Regra de objectivo
nacionais, devendo juntar-se em Lisboa truída, na praia do Corpo Santo. O “vento semelhante era a que beneficiava nas taxas
com os “Galeões de Portugal”, para irem a palmelão” – como se dizia – sopra de sueste de arqueação quem construísse galeões de
França combater os hereges. (do lado de Palmela) com violência, enca- mais de 120 toneladas, do tipo dos que se
Parece-me evidente que a operação ti- nado com o rio Coina, provocando grande usavam nas armadas reais. E, para além do
nha um carácter um pouco extemporâneo, alteração no Tejo. Se apanhasse os navios benefício pecuniário, o armador receberia
tanto mais que estava a ser preparada com desguarnecidos, podia levá-los a virar so- o grau de “cavaleiro fidalgo” da casa real.
uma pressa desmedida, onde prevalecia bre o ferro e a garrar para cima da margem Esta lei tem uma intenção clara de promo-
o impulso e a paixão sobre razão política norte. Mas isto era uma contingência do rio ver iniciativas particulares na construção e
ponderada. A França, apesar de tudo, não da capital, e um incidente desta natureza apetrechamento de navios com capacidade
era uma potência qualquer, mesmo que só pode ter na sua base muita negligência militar, estimulando o poder naval nacio-
assolada por violentas guerras civis, sendo e muita falta de atenção, tão surpreendente nal com custos repartidos e diminuindo as
duvidosa a possibilidade de êxito de uma quanto não deviam faltar marinheiros ex- despesas da coroa. A iniciativa parece notá-
operação naval desta envergadura. Talvez perimentados. vel e podia ter encetado uma nova era, não
visasse atacar os portos protestantes, à ma- Seriam certamente as circunstâncias dos fossem os acontecimentos que culminaram
neira corsária e valendo-se da legitimidade tempos. Talvez as mesmas que obrigaram em Alcácer Quibir.
de represália, furtando-se a qualquer com- o rei a publicar a lei de 1571, cujo conteúdo,
bate de grande envergadura, e retirando se dividido em 24 capítulos, visava a protecção J. Semedo de Matos
necessário. Pouco se sabe sobre este assun- do comércio e o incentivo à construção de va- CFR FZ
21REVISTA DA ARMADA • NOVEMBRO 2011