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A MARINHA DE D. SEBASTIÃO (26)
O Vice-Rei D. Luís de Ataíde
Na Marinha de D. Sebastião (11) e (12) onde vinha o ouro de Sofala; e a nomeação combates que travou, em 1546 e 1547, contra
dava conta de uma crise no Estado de D. Luís de Ataíde como vice-rei da Índia, os luteranos da liga de Schmalkalden.
da Índia, decorrente de um conjun- com o objectivo de dar uma nova imagem à
to de factores internos e externos, a que não vivência no Oriente e um fôlego suplementar Em 1568 foi nomeado vice-rei da Índia
foi estranha a queda do reino hindu de Vi- à presença militar portuguesa. por D. Sebastião, embarcando numa arma-
jaynagar, em 1565. Aparentemente, Portugal D. Luís nasceu em 1518 enquanto filho da de cinco naus que chegou a Goa em Ou-
deu pouca importância a este acontecimento, segundo de D. Afonso de Ataíde, herdado tubro desse ano. Ia ocupar o lugar que fora
negligenciando como ele seria determinante o título de conde de Atouguia, aquando da de D.Antão de Noronha, em quem se tinham
para o crescimento do poder do Islão na Pe- morte de seu irmão num combate com os depositado grandes esperanças, mas que não
nínsula Hindustânica, e como isso fragiliza- mouros em Santa Cruz do Cabo de Gué. Foi lograra operar a reviravolta necessária, no
ria a posição nacional no Oceano Índico. momento em que os sultanatos de Bijapor
Eram assim os tempos: no “gosto da co-
biça e na rudeza de uma austera apaga- (do Hidalcão), Golconda, Ahmednagar
da e vil tristeza” – como disse Camões se aliavam contra os portugueses, jun-
– sangrava-se uma galinha dos ovos de tando-se-lhe o Samorim de Calecut e
ouro, sem ver que a matavam impiedo- outros tradicionais inimigos em Ceilão,
samente. Em Lisboa crescia o sentimen- na costa de Canará e no Achém. Portu-
to de que a fidalguia se perdia em tratos gal defrontou a mais alargada coligação
de comércio, sobrando-lhe em ambição muçulmana e viveu o pior cenário de
o que lhe escasseava em virtude e abne- contestação, até à chegada dos holan-
gação. Aparentemente recupera terre- deses ao Oriente.
no a ideia de que melhor é combater os
mouros no Norte de África do que en- Como digo, os portugueses da Índia
viar gente para a Índia, e, de facto, sen- tinham visto com alguma indiferença a
te-se um redireccionamento do esforço derrota do Vijaynagar, mas a imensa co-
militar nesse sentido, muito marcado ligação islâmica que lhe sucedeu assus-
pela ansiedade de D. Sebastião para a tou-os seriamente e foi vista com grande
guerra. Contudo, é preciso dizer que apreensão em Lisboa. Para além de um
esta inflexão tem em vista o Atlântico, interesse económico ameaçado, combater
como novo espaço de interesse nacio- os mouros enquadrava-se dentro do es-
nal, e nunca descurou completamente o pírito de uma nova moral de cruzada, de
Oriente. A produção de açúcar assumiu que o rei era o paladino mais fervoroso.
uma proporção que superou os valores
do comércio da pimenta e, ao açúcar, D. Luís entrou em Goa depois de dar
ligou-se o tráfico de escravos africanos, instruções específicas de que deveria
nascendo uma rede de vias marítimas ser alterado o cerimonial de recepção
anteriormente inexistentes. Emerge uma ao novo vice-rei. Em vez dos jogos e fes-
teia atlântica de rotas comerciais, com es- tas na rua, com grandes folguedos das
pecial relevo para as que ligavam a cos- gentes, determinou que fosse recebido
ta africana ao Brasil, mas com ligações à por gente de guerra, a cavalo e a pé, de-
Europa e complementadas por pontos D. Luís de Ataíde vidamente formada em alas a partir do
de acrescido valor estratégico nas ilhas Pedro Ba rreto de Resende – Livro do Estado da Índia. cais, exibindo as suas armas e vestes de
combate, como uma guarda de honra
e no Norte de África. pela primeira vez à Índia com a armada do vi- dos dias de hoje. Ele próprio desembar-
As motivações dos seres humanos são de ce-rei D. Garcia de Noronha, no ano de 1538. cou da mesma forma, argumentando
naturezas diversas, como todos sabemos, e o Como tive ocasião de referir nas Marinha de que “fora mandado por um rei que ape-
historiador tem de compreender as múltiplas D. João III (31) e (32), D. Garcia faleceu prema- nas lhe pareciam bem as coisas de guerra e
vertentes de cada época, relacionando-as en- turamente no seu posto, sucedendo-lhe Estê- não as diversões”. Na realidade sabia como
tre si.Aobsessão africana de D. Sebastião tem vão da Gama, que levou a cabo um conjunto todos os inimigos mandavam os seus espi-
razões religiosas e morais, mas é alimentada de acções militares tendentes a consolidar a ões a Goa, à chegada dos navios, procurando
por gente que quer deixar de investir na Ín- posição portuguesa no Índico.Amais impor- colher informações úteis sobre as condições
dia, apercebendo-se que o açúcar pode suce- tante delas foi a expedição ao Mar Vermelho, futuras da governação portuguesa. Por isso
der à pimenta, abrindo-se novas vias de in- onde atacaram várias posições turcas, chegan- mandou anunciar que apenas trazia dinheiro
vestimento. Mas não é legítimo dizer que o do à vista de Suez, onde não conseguiram en- e armas – muitas armas – e que, daí em dian-
rei (ou o seu conselho) abandonou, de todo, o trar devido às fortes estruturas defensivas. D. te, não se tratariam de outros assuntos que
Oriente. Tanto mais que, na sequência da que- Luís foi armado cavaleiro pelo governador, não da guerra.
da do Vijaynagar, se organizava uma ampla durante essa campanha naval (Abril de 1541), De facto, as primeiras medidas adminis-
coligação contra os portugueses, e combatê-la numa pequena capela na Península de Sinai, trativas foram no sentido de organização da
era um dever cristão muito ao gosto da moral onde uns monges gregos se consagravam ao armada e das forças militares. A Índia iria
emergente. Saliento duas medidas importan- culto de Santa Catarina. Regressou a Lisboa assistir a uma nova forma de governo, que
tes, tomadas no sentido de alterar a situação na armada de 1542, com um prestígio que lhe correspondia ao espírito guerreiro emergente
vivida no Oceano Índico: a decisão de orga- valeu a nomeação para embaixador junto de em Lisboa, mas disso daremos conhecimento
nizar uma expedição ao Monomotapa, de Carlos V, tendo ocasião de o acompanhar nos noutra Revista.
J. Semedo de Matos
CFR FZ
REVISTA DA ARMADA • JANEIRO 2012 17