Page 30 - Revista da Armada
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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (13)

 Eu SMURF me confesso…

Habitualmente gosto de fazer despor-             discais, a artrose da anca, havia até o smurf    Daqui respondo que não, não tenho quo-
        to. Alivia a alma e fornece-me a força   obeso que já tinha feito “bypass” coronário e  ta. No entanto, nunca conseguiria explicar-
        que muitas vezes é necessária para       estava na piscina para “perder peso”…entre     -lhes, sem ser desta forma, os outros benefí-
levar a vida. Daquela vez levei a minha filha    muitos outros. Contudo, a forma como foram     cios que as colónias smurfianas trazem para
e fui à piscina. Como todos, tive que colo-      avançando as “histórias clínicas” era livre e  a alma – para além dos óbvios benefícios
car um daqueles barretes de aspecto mais ou      descontraída, de modo que nem eu me sen-       para o corpo, que muitos discípulos de Es-
menos ridículo. Não estava só, naquele do-       ti perturbado na distribuição de conselhos,    culápio promoveram, ao longo dos séculos.
mingo à tarde, haviam imensas pessoas, des-      nem os “doentes” pareciam nervosos com as      Parece-me, que num tempo agitado, cheio
de homens mais ou menos barrigudos, com          intimidades que partilhavam de forma quase     de incerteza, medo e perene em padecimen-
um barrete até às orelhas, até jovens tatuados   pública – só perturbada pela chegada da tri-   tos a existência de um oásis assim, acessível,
com uma espécie de lenços plastificados, de      bo da hidroginástica (composta por senhoras    e disponível todos os dias, é de primordial
padrões camuflados com cores de amarelo e        apressadas, que dançam ao som de cânticos      importância.
laranja (certamente criados para camuflagem      de guerra entoados da margem, orquestrados
nocturna numa qualquer discoteca, onde           por um agitado xamã exótico, que as castiga      Afigura-se-me, também, que os smurfia-
os perigos abundam nos dias que correm).         até ao transe…).                               nos dão uma ideia humana excelente. Mui-
Como o meu barrete era azul a minha filha                                                       to diferente dos portugueses “plastificados”
apelidou-me de “smurf”, baseando-se numa           No geral, as conversas dos smurfs, mes-      em ideias feitas, noções boçais sobre o que
série infantil que eu mal conheço…               mo as de assuntos tão sérios, são marcadas     é importante e uma vida de relação marca-
                                                 por um sentido de humor leve e um olhar        da pela futilidade – com que frequentemen-
  No meu fato smurfiano continuei a frequen-     descomprometido sobre o mundo em geral         te me deparo.
tar a piscina. Percebi que os smurfs regulares,  e sobre o nosso país em particular que – di-
particularmente os mais maduros, se cumpri-      zem alguns deles – sempre saltou de crise        Fique-se, portanto, daqui a conhecer que
mentam – atitude rara hoje em dia –, dizem       em crise. É o “modo de ser português”, di-     as férias nas Caraíbas já não colhem. Reco-
os bons dias, as boas tardes e, um verdadei-     zia outro, enquanto ajeitava o dito barrete,   mendo uma pausa na piscina. Garantia para
ro crime, sorriem uns para os outros, mesmo      que lhe caía ridiculamente para os olhos, de   o alívio nas dores nas costas, promotor da
para aqueles que só viram uma vez… Con-          forma mais ou menos ostensiva…                 muito importante redução do perímetro ab-
tam histórias de um tempo que já não existe...                                                  dominal e um bálsamo para o espírito. Exis-
                                                   Ora a este tempo perguntarão alguns dos      te todavia uma condição importante. Todos
  Com as visitas regulares à piscina – como      meus – certamente poucos – leitores, porque    os smurfianos têm que se despir – no corpo
seria expectável – começaram a contar-me         é que eu falo aqui da experiência smurfiana.   e no preconceito. Têm que reconhecer que
as suas mazelas. De uma forma discreta e         A verdade é que recomendo muitas vezes         os outros existem como pessoas. Só assim
delicada, particularmente quando a con-          aos meus pacientes navais que façam exer-      serão aceites. Só assim usarão a sua touca
versa é temperada pela água quente daque-        cício regularmente e, nos últimos tempos,      com orgulho.
le pântano borbulhante, invenção exótica         que procurem a piscina. A prescrição tornou-
que dá pelo estranho nome de “Jacussi”, ou       -se tão frequente e (admito intimamente) tão     Só assim serão verdadeiros smurfs…
qualquer coisa assim...Percebi então aquilo      enfática, que já houve quem perguntasse:                                                          
que já sabia, todos têm o seu caminho, todos
carregam as suas mágoas físicas. As hérnias        – Doutor tem alguma quota nos fabrican-                                                  Doc
30 MAIO 2012 • REVISTA DA ARMADA                 tes de piscinas ou nos clubes de natação?
                                                                                                N.R.
                                                                                                O autor não adota o novo acordo o­rtográfico.
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