Page 26 - Revista da Armada
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Uma das principais particularidades O acaso
do acaso é, sem dúvida, a surpre-
za. Quanto a mim, que já tenho Zambézia, num dos braços do delta gigan- antecipou-se, quis fazer uma flor, raptando
alguma pratica na sua procura e identifi- tesco do rio Zambeze. Eu era comandante a dama, mas não tendo tomado as neces-
cação, confesso que, por vezes, enfrento da Tete, uma vetusta lancha de fiscaliza- sárias percauções, sucedeu o pior: a frágil
algumas dificuldades para acreditar no que ção, cuja propulsão era devida a uma roda Nereida não tendo sida tratada com carinho,
está a acontecer. Todavia, quero esclarecer à popa, movimentada pela força do vapor. não aguentou, desfez-se e caiu nas águas do
o leitor que só estou a considerar o acaso Um das minhas missões era efectuar uma Zambeze para se ir perder na imensidão do
feliz, aquele que Horace Walpole classifi- viagem de fiscalização, ao longo daquele Índico. Por favor fixem o nome da carran-
cou de serendipidade. Quanto aos outros, imenso rio, até à cidade de Tete, mostrando ca: Nereida.
abomino-os. a Bandeira Nacional às populações. Seria a
única viagem que faria, dado que, no ano 3º Tempo: Passados mais de 30 anos, es-
Para encontrar manifestações do acaso, seguinte, fui transferido para a Capitania tou a prestar serviço no Museu de Marinha
na nossa vida, é indispensável atender o de Quelimane. onde, praticamente, não existiam figuras de
seguinte procedimento: ir ao sótão buscar proa. Qual a razão? Tivemos, de facto, um
a máquina do tempo, lubrificá-la, atestá- Logo à saída do Chinde, deparei com um belo lote reunido na Casa do Risco, como
-la de combustível, carregar no botão “re- navio encalhado, num dos braços do delta. nos diz Brás de Oliveira: eram carrancas,
turn” e, depois, estar com toda a atenção Era o Nereid, esse nome genérico das 50 provenientes de bem conhecidos navios do
para registar os acontecimentos do nosso filhas de Nereu e de Dóris, deuses gregos. passado, tais como: as corvetas Estefânia e
passado, que têm desfechos inesperados. Estava ali havia longos anos e exibia uma Raínha de Portugal, a barca Martinho de
O leitor nem vai acreditar no que irá des- figura-de-proa, naturalmente uma bela Ne- Melo, os vapores Barão de Lazarim e Minde-
cobrir ao longo deste exercício. reida, onde a cor branca – para meu espanto lo, o couraçado Vasco da Gama, carrancas,
-- ainda se mantinha. Estava a vê-la a deco- essas, que iriam ser integradas no nosso Mu-
Todavia, há ainda um outro aspecto que rar a entrada da Capitania. Falei ao sargento, seu. Todavia, um pavoroso fogo destruiu-as
interessa considerar: o sucesso no acaso mestre do navio, na remoção da carranca, completamente, no ano de 1916, juntamen-
nem sempre resulta de um só golpe. Foi o explicando-lhe o interesse que havia em a te com outros preciosos objectos.
que aconteceu com o episódio a que me retirar com o maior cuidado, dado que ma-
referi no Primeiro Ciclo de Conferências do deira devia estar muito ressequida e podia Entretanto vim a saber, que António He-
Património, que teve lugar, recentemente, quebrar-se. A montagem duma plataforma rédia tinha em sua casa um bela figura de
no Museu de Marinha, onde li um “papel” seria indispensável, para que a figura de proa. Herédia era bem conhecido por ter
que intitulei: “O acaso na valorização do proa não se perdesse. O mestre entusias- sido um ás do automobilismo. Mas como
Património.” No entanto, previamente, para mou-se com a operação e lá seguimos via- conseguir esta figura de proa? Certo dia,
que os meus leitores se familiarizassem gem nas águas calmas do Zambeze. vou almoçar à Casa Seixas, em Cascais e
com os aspectos, por vezes, inacreditáveis Herédia estava numa mesa onde também se
do acaso, decidi descrever uma situação No posto de Chacuma, depois de algu- encontrava o comandante Gervásio Leite,
de que fui testemunha e que aconteceu mas horas de navegação, desembarcámos bastante mais antigo do que eu, mas que
em três tempos: os familiares dos elementos da guarnição, me conhecia. A certa altura levanta-se da
que, tradicionalmente, acompanhavam a mesa e eu aproximei-me dele para lhe dizer
1º Tempo: Após a minha promoção a guarnição no primeiro troço do percurso. que gostava de falar ao seu amigo Herédia,
guarda-marinha, deram-me o lugar de ime- acerca duma figura de proa que ele tinha
diato da Corvina, uma lancha que fazia a Foi um encanto fazer uma viagem de bar- em casa e que ficava bem no Museu de Ma-
fiscalização das pescas nas águas da zona co por dentro duma floresta de vegetação rinha. Quando terminaram o almoço, para
norte do país. O navio era comandado por exuberante e, como não existia balizagem espanto meu, os dois amigos passam pela
Almeida Brandão. Corria o ano de 1947 e, luminosa, todas as tardes atracávamos a minha mesa e Herédia convida-me a mim
justamente, a 16 de Janeiro, uma data que uma árvore num dos muitos postos admi- e a minha mulher para almoçar, no sába-
não posso esquecer, assisti a um trágico nistrativos que existiam ao longo do rio. Os do seguinte, em sua casa no Monte Estoril.
acidente marítimo. Estávamos pairando, a únicos brancos que encontrávamos eram os
aguardar a entrada na barra do Rio Dou- Chefes de Posto, que viviam, quase todos, Herédia vivia numa bela moradia, agora
ro, fechada devido ao mau tempo, quan- sem família. A nossa chegada era uma fes- cheia de troféus, que tinha sido residência
do aparece o Meteoro, uma pequena em- ta para as populações. Nós oferecíamos sal do rei D. Luís e de D. Maria Pia de Sabóia.
barcação que, desrespeitando as ordens e arroz. Por vezes comprávamos galinhas. Só a meio do almoço é que Herédia me
da capitania, forçou a entrada. Vimo-la ser E, também metíamos combustível, previa- pergunta o que eu queria dele? Falo-lhe da
levantada por uma onda e virar-se como se mente encomendado, constituído por le- tragédia que nos levou as figuras de proa,
fosse um brinquedo de criança. Os tripu- nha seca que enchia dois batelões, que nos que estavam destinadas ao Museu de Ma-
lantes, esses, lançaram-se à água, sem que acompanhavam de braço dado. rinha e da carranca, que eu sabia que ele
nada se pudesse fazer para os salvar. Julgo possuía. Ouviu-me e, quando acabei a mi-
que, de todos esses marinheiros, apenas Em Tete fomos recebidos pelo Governa- nha arenga, Herédia diz-me: “Na segunda-
um conseguiu atingir as areias do Cabede- dor. No regresso, subimos o rio Chire e, -feira, pode mandar buscar a carranca!”
lo. Este episódio foi, para mim, a primeira numa política de boa vizinhança, fomos Agradeci efusivamente e quando lhe per-
grande lição da minha nova vida. Aprendi cumprimentar as autoridades na vizinha guntei o nome do iate que a figura de proa
que, no mar, é obrigatório – imprescindí- Niassalândia. Regressámos ao rio Zambeze adornava, respondeu-me: “Nereida, mas o
vel, até – cumprir todas as regras de segu- e, ao fim de três semanas, já estávamos, de iate vendi-o e, o novo proprietário, mudou-
rança (inclusive) atender aos avisos de mau novo, nas proximidades da minha dama. -lhe o nome para Meteoro.”
tempo. Por favor fixem o nome da embar-
cação: Meteoro. “Vamos ver a Nereida!”, disse eu, muito O acaso, por vezes, parece bruxedo!
ufano, ao piloto que era, também, o mari-
2º Tempo: Em Maio de 1959, era capitão nheiro do leme. Mas quando nos aproximá-
do porto do Chinde, em Moçambique, uma mos; “Qu’é dela? Roubaram-me a Nereida?” António Estácio dos Reis
pequena povoação, situada no distrito da
26 MAIO 2012 • REVISTA DA ARMADA Vim a saber que, ainda com os familia- CMG
res a bordo, o Mestre do navio apregoou estacioreis@netcabo.pt
a operação que iria fazer quando chegas-
se ao Chinde. Pois bem, um jovem atento, N.R.
O autor não adota o novo acordo ortográfico.