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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (20)

Quanto mais, é demais...

Encontrei este papel na minha cai-          que se reformar precocemente. A nossa         Se eu fosse estrangeiro e conhecesse
      xa de correio. Durante alguns dias    heroína equilibrava o orçamento com as      histórias destas, ficaria, talvez, impres-
      a pungência da mensagem viveu         mesmas tarefas domésticas que vendia à      sionado. Diria então que não faz senti-
 comigo, naquele lugar mal resolvido e      hora… ainda tinham esperança…               do num país com mais carros de luxo a
 imperfeito em que não pareço encontrar                                                 circular do que nos países da Europa do
 solução para a perplexidade da vida…        Há cerca de dois anos, quando esta         Norte, que factos destes possam ser ver-
 Lembrei-me, naqueles dias, que também      crise se instalou, as ofertas de trabalho   dade. Perguntar-me-ia quanto mais esta
 eu nasci pobre. Lembrei-me também da       no ramo em que esta senhora ganhava a       gente pode suportar. Quanto, quanto
 combinação secreta que tenho com o si-     vida diminuíram cada vez mais. Mas me-      mais será demais?
 lêncio dos que sofrem: um compromisso      nos mal, tinham a pensão do João e para
 com quem não tem voz…                      os dois chegava (…já que o apartamento        Parecer-me-ia que a intensidade emo-
                                            da Reboleira estava pago). Contudo, as      cional daquelas palavras (acessíveis
  Imaginemos então que a história desta     coisas passaram de mal a pior, quando       até ao mais empedernido de entre nós)
 mulher – visto que só uma mulher seria     uma das filhas perdeu o emprego. Esta fi-   respondem, de forma clara, ao quanto
 capaz de cozinhar, fazer limpezas e to-    lha é mãe solteira. As netas desta senhora  mais é tolerável para aquela maioria si-
 das as duras tarefas para as quais dois    – duas meninas lindas – eram fruto de um    lenciosa, que preenche estas ilhas soli-
 euros seriam suficientes – se conta nes-   casamento que se perdeu nos meandros        tárias que são os subúrbios das grandes
 tas palavras. Tem cerca de 65 anos, nas-   dos subúrbios e da droga do companhei-      cidades. Distantes, cada vez mais distan-
 ceu na província, num tempo em que a       ro, que não se orientou (como acontece      tes da metrópole anunciada pelo 25 de
 educação era reservada apenas a alguns.    com muitos outros) na selva de cimento,     Abril e outras revoluções, de dentro e de
 Eram oito os seus irmãos, que se perde-    cheia de promessas luminosas, de deuses     fora, que nunca lhes mudaram o destino:
 ram na vida uns para a França, um outro,   enganadores, terrenos, que nunca cum-       nasceram para sofrer…
 o mais velho, perdeu a vida na Guerra      prem o que prometem…                         Espero que esta senhora tenha encon-
 de África, lá na escuridão da Guiné Dis-                                               trado, por dois euros à hora, o caminho
 tante. Assim que lhe foi possível “emi-     Seria para manter as netas, que a nossa    para criar as suas netas. A dignidade que
 grou” ela própria para a Lisboa distante.  mulher escreveu a missiva que tanto me      revelou dar-lhe-á sempre crédito, nesta e
 Conhecia alguém que lhe arranjou um        impressionou??                              noutras vidas (porque só quem tem mui-
 emprego na casa de uma senhora, como                                                   tas vidas para gastar, suporta tamanhos
 criada de servir…                           Não sei! Toda esta história, como com-     sofrimentos). Resta-nos D. Sebastião. Um
                                            preenderá o leitor, é completamente         rei que, tomo-o como absolutamente
  Os anos passaram até que conheceu o       inverosímil e absolutamente rara. Fruto     certo nesta noite, erguer-se-á da bruma,
 João. Depois do Serviço Militar o João     da minha mente inquieta e de uma ima-       vezes e vezes sem conta, dando forma à
 arranjou um bom emprego, como me-          ginação doida e muito politicamente         esperança de um povo rijo, que tolerou
 cânico numa multinacional automóvel.       incorreta. Na verdade, como se repeti-      ao longo dos séculos, a fome, a solidão
 Os dois juntaram as magras economias       rá no Parlamento Europeu e nas muitas       e o medo…
 e deram um sinal para o apartamento do     instâncias internacionais a que Portugal     A esta altura alguém vai dizer: o Doc
 J. Pimenta, que viriam a ocupar na míti-   pertence, toda a gente sabe que num país    ensandeceu! Esta história não tem nada a
 ca Reboleira, onde a nossa amiga ainda     Europeu, que se diz desenvolvido e mo-      ver com a Marinha… A verdade é que os
 vive. Tiveram quatro filhos, que foram     derno, estas histórias só podem ser fruto   marinheiros também são pessoas atentas
 crescendo em relativa paz e conforto       de delírio tresloucado… Contudo, ai de      e preocupadas (…acredito intimamente
 nos anos 80 e 90. Entretanto, em 2001, o   mim, conheço nos meandros da vida e         que esta sensibilidade explica alguma
 João teve um acidente em Serviço e teve    da profissão tantas, tantas assim… algu-    da tolerância revelada para com os meus
                                            mas até piores…                             escritos ao longo dos anos). Na tem-
                                                                                        pestade a que esta história se refere, os
                                                                                        marinheiros não estão em terra. Ao con-
                                                                                        trário, navegam por entre as sucessivas
                                                                                        ondas (de entre as quais as mudanças na
                                                                                        Saúde Militar), procurando porto seguro
                                                                                        à mercê de um balanço proa-popa, que
                                                                                        parece não ter fim. Dito de outra forma,
                                                                                        poderia-se-ia, do mesmo modo, contar
                                                                                        muitos outros episódios de índole social,
                                                                                        que afligem os nossos, particularmente
                                                                                        aqueles que já estão reformados…
                                                                                         Acredito, finalmente, que a grande
                                                                                        maioria dos meus resignados leitores tem
                                                                                        amor pelo seu país e vontade, genuína,
                                                                                        de ajudar. Serão esses que melhor com-
                                                                                        preenderão este desusado escrito.

                                                                                                                                        Doc
                                                                                          REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2013 31
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