Page 31 - Revista da Armada
P. 31
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA (20)
Quanto mais, é demais...
Encontrei este papel na minha cai- que se reformar precocemente. A nossa Se eu fosse estrangeiro e conhecesse
xa de correio. Durante alguns dias heroína equilibrava o orçamento com as histórias destas, ficaria, talvez, impres-
a pungência da mensagem viveu mesmas tarefas domésticas que vendia à sionado. Diria então que não faz senti-
comigo, naquele lugar mal resolvido e hora… ainda tinham esperança… do num país com mais carros de luxo a
imperfeito em que não pareço encontrar circular do que nos países da Europa do
solução para a perplexidade da vida… Há cerca de dois anos, quando esta Norte, que factos destes possam ser ver-
Lembrei-me, naqueles dias, que também crise se instalou, as ofertas de trabalho dade. Perguntar-me-ia quanto mais esta
eu nasci pobre. Lembrei-me também da no ramo em que esta senhora ganhava a gente pode suportar. Quanto, quanto
combinação secreta que tenho com o si- vida diminuíram cada vez mais. Mas me- mais será demais?
lêncio dos que sofrem: um compromisso nos mal, tinham a pensão do João e para
com quem não tem voz… os dois chegava (…já que o apartamento Parecer-me-ia que a intensidade emo-
da Reboleira estava pago). Contudo, as cional daquelas palavras (acessíveis
Imaginemos então que a história desta coisas passaram de mal a pior, quando até ao mais empedernido de entre nós)
mulher – visto que só uma mulher seria uma das filhas perdeu o emprego. Esta fi- respondem, de forma clara, ao quanto
capaz de cozinhar, fazer limpezas e to- lha é mãe solteira. As netas desta senhora mais é tolerável para aquela maioria si-
das as duras tarefas para as quais dois – duas meninas lindas – eram fruto de um lenciosa, que preenche estas ilhas soli-
euros seriam suficientes – se conta nes- casamento que se perdeu nos meandros tárias que são os subúrbios das grandes
tas palavras. Tem cerca de 65 anos, nas- dos subúrbios e da droga do companhei- cidades. Distantes, cada vez mais distan-
ceu na província, num tempo em que a ro, que não se orientou (como acontece tes da metrópole anunciada pelo 25 de
educação era reservada apenas a alguns. com muitos outros) na selva de cimento, Abril e outras revoluções, de dentro e de
Eram oito os seus irmãos, que se perde- cheia de promessas luminosas, de deuses fora, que nunca lhes mudaram o destino:
ram na vida uns para a França, um outro, enganadores, terrenos, que nunca cum- nasceram para sofrer…
o mais velho, perdeu a vida na Guerra prem o que prometem… Espero que esta senhora tenha encon-
de África, lá na escuridão da Guiné Dis- trado, por dois euros à hora, o caminho
tante. Assim que lhe foi possível “emi- Seria para manter as netas, que a nossa para criar as suas netas. A dignidade que
grou” ela própria para a Lisboa distante. mulher escreveu a missiva que tanto me revelou dar-lhe-á sempre crédito, nesta e
Conhecia alguém que lhe arranjou um impressionou?? noutras vidas (porque só quem tem mui-
emprego na casa de uma senhora, como tas vidas para gastar, suporta tamanhos
criada de servir… Não sei! Toda esta história, como com- sofrimentos). Resta-nos D. Sebastião. Um
preenderá o leitor, é completamente rei que, tomo-o como absolutamente
Os anos passaram até que conheceu o inverosímil e absolutamente rara. Fruto certo nesta noite, erguer-se-á da bruma,
João. Depois do Serviço Militar o João da minha mente inquieta e de uma ima- vezes e vezes sem conta, dando forma à
arranjou um bom emprego, como me- ginação doida e muito politicamente esperança de um povo rijo, que tolerou
cânico numa multinacional automóvel. incorreta. Na verdade, como se repeti- ao longo dos séculos, a fome, a solidão
Os dois juntaram as magras economias rá no Parlamento Europeu e nas muitas e o medo…
e deram um sinal para o apartamento do instâncias internacionais a que Portugal A esta altura alguém vai dizer: o Doc
J. Pimenta, que viriam a ocupar na míti- pertence, toda a gente sabe que num país ensandeceu! Esta história não tem nada a
ca Reboleira, onde a nossa amiga ainda Europeu, que se diz desenvolvido e mo- ver com a Marinha… A verdade é que os
vive. Tiveram quatro filhos, que foram derno, estas histórias só podem ser fruto marinheiros também são pessoas atentas
crescendo em relativa paz e conforto de delírio tresloucado… Contudo, ai de e preocupadas (…acredito intimamente
nos anos 80 e 90. Entretanto, em 2001, o mim, conheço nos meandros da vida e que esta sensibilidade explica alguma
João teve um acidente em Serviço e teve da profissão tantas, tantas assim… algu- da tolerância revelada para com os meus
mas até piores… escritos ao longo dos anos). Na tem-
pestade a que esta história se refere, os
marinheiros não estão em terra. Ao con-
trário, navegam por entre as sucessivas
ondas (de entre as quais as mudanças na
Saúde Militar), procurando porto seguro
à mercê de um balanço proa-popa, que
parece não ter fim. Dito de outra forma,
poderia-se-ia, do mesmo modo, contar
muitos outros episódios de índole social,
que afligem os nossos, particularmente
aqueles que já estão reformados…
Acredito, finalmente, que a grande
maioria dos meus resignados leitores tem
amor pelo seu país e vontade, genuína,
de ajudar. Serão esses que melhor com-
preenderão este desusado escrito.
Doc
REVISTA DA ARMADA • FEVEREIRO 2013 31