Page 16 - Revista da Armada
P. 16

A MARINHA NO FINAL DA DINASTIA DE AVIS (2)

AS TEIAS DA DIPLOMACIA IBÉRICA

Ocurto reinado do Cardeal D. Henri-                 fácil visualizar esta teia complexa de casamen-     parar às mãos, mas a batalha era muito difícil.
         que foi marcado pela incessante bus-       tos e filhos, mas entende-se que em 1578 pou-        Cristóvão de Moura era uma figura hábil: por-
         ca de uma solução sucessória que           cos podiam candidatar-se ao trono português.
ultrapassasse o imbróglio em que a morte pre-       E o mais poderoso dos candidatos não era se-        tuguês nascido na Chamusca, foi pajem da mãe
matura de D. Sebastião deixara o reino. O ab-       quer português, o que muito afrontava os povos      de D. Sebastião e emigrou para Castela quan-
surdo e a impotência são as palavras que me         como nos dizem os documentos da época.              do a princesa enviuvou e regressou à sua terra;
ocorrem com maior propriedade para descre-                                                              tinha alguma influência na corte madrilena e,
ver a situação vivida em Portugal naquele ano         O cardeal D. Henrique foi aclamado rei de         sobretudo, sobrava-lhe ambição. Uma ambição
e meio de governo. Mas para que possamos            Portugal a 28 de Agosto de 1578, poucos dias        que perscrutava o seu caminho na via aberta
medir a sua dimensão é interessante recordar        depois de se ter confirmado a morte de D. Se-       pela contenda sucessória. Precisava de estar
a sucessiva descendência dos reis de Portugal,      bastião e sem que isso merecesse qualquer con-      atento ao que ia fazendo D. Henrique de forma
desde o reinado de D. Manuel. Veremos os            testação. Mas a complicação futura adivinhava-      e transmitir as informações necessárias para que
caprichos que o destino nos pode reservar e         -se na sua idade avançada e no facto de não         tudo fosse atrasado. Uma das primeiras decisões
como são complexas e inesperadas as vias            ter filhos. Felipe II percebera muito cedo que o    do cardeal foi pedir dispensa papal dos votos de
sinuosas da tragédia.                                                                                   celibato, para que pudesse casar e ter descen-
                                                    Felipe II.                                          dência, mas o tempo urgia. Cristóvão de Moura
  Pouco depois de subir ao trono, o “Ven-           Ticiano – Museu do Prado.                           informou desse propósito Felipe II, que tratou de
turoso” casou em primeiras núpcias com                                                                  criar as condições para que o processo se atra-
Dª Isabel, a viúva do príncipe D. Afonso, o         momento era dele, e trabalhou com diligência        sasse em Roma. Primeiro o pedido foi recusado
malogrado filho de D. João II, morto prema-         para que nada pudesse estorvar o seu caminho.       pelo papa, depois foi reavaliado por interposi-
turamente num acidente de cavalo. Retoma-           No dia 20 de Agosto de 1578, ainda antes da         ção portuguesa e enviado um emissário a Lis-
va assim o projecto de união ibérica do seu         entronização do Cardeal e logo que recebeu as       boa para se informar e negociar, mas os meses
antecessor e, poucos meses depois, a rainha         primeiras notícias de Alcácer Quibir, mandou        iam passando e o rei definhava. Todavia, a ac-
dava-lhe um filho, a que foi dado o nome de         para Portugal Cristóvão de Moura com uma            ção mais decisiva do enviado de Castela desen-
D. Miguel, neto dos Reis Católicos e jurado         mensagem formal de condolências e promessas         volveu-se junto de gente influente procurando
como dos reinos de Portugal, Castela e Ara-         para a coroa e para o povo português, mas com       aliciá-la para o seu partido. Os primeiros foram
gão. O príncipe, contudo, não completaria           uma intensa agenda política disfarçada, cujo        aqueles que D. Henrique condenou e afastou
dois anos de idade. Faleceu no ano de 1500          objectivo era o de manter abertas as portas para    do poder acusando-os de terem fomentado a
e está sepultado na catedral de Granada,            o seu senhor. D. Henrique sabia bem das in-         expedição africana de D. Sebastião. O mais im-
junto ao túmulo dos seus avós.                      tenções do seu sobrinho castelhano, tanto mais      portante de todos foi Pêro de Alcáçova Carnei-
                                                    que acompanhara atentamente as manobras             ro: exilado para fora da corte sem apelo, foi ele
  D. Manuel voltou a casar com outra prin-          levadas a cabo no tempo de D. Sebastião, e iria     que preveniu o Secretário das diligências de D.
cesa de Castela, a sua cunhada Dª Maria, de         fazer o possível para evitar que a coroa lhe fosse  Henrique para a sucessão da duquesa de Bra-
quem teria 10 filhos sobrevivos ao nascimen-                                                            gança. Mas houve, também, uma distinta classe
to. O mais velho foi D. João III, rei de Portugal,                                                      de juristas que Cristóvão de Moura foi compran-
seguindo-se-lhe ordenadamente Dª Isabel (a                                                              do progressivamente e obtendo os fundamentos
Imperatriz), Dª Beatriz (duquesa de Sabóia),                                                            escritos necessários à garantia dos direitos suces-
D. Luís, D. Fernando, D. Afonso, Dª Maria, D.                                                           sórios de Felipe II. São muitos os exemplos, que
Henrique (cardeal rei), D. António e D. Duar-                                                           incluem figuras gradas de erudição, lentes da
te. Este último desposou a filha do 4º duque                                                            Universidade de Coimbra e pessoas formadas
de Bragança, de quem teria três filhos, entre                                                           em Bolonha ou Salamanca, com importantes
os quais Dª Catarina que, como veremos ain-                                                             cargos na administração portuguesa. Destaca-se
da, viria a ser uma das candidatas ao trono                                                             o caso do Doutor António da Gama, cujo pare-
português, em 1580. Casou uma terceira vez                                                              cer foi comprado com um cargo no Conselho
e teve mais dois filhos, mas nenhum deles                                                               de Castela e uma tença pecuniária para o filho
viveu até à crise dinástica de 1580. Por seu                                                            estudar em Salamanca. Portugal foi palco de jo-
lado, D. João III, seu sucessor no trono, casou                                                         gos de poder tremendos e é difícil vislumbrar a
com Dª Catarina, irmã do imperador Carlos V,                                                            história do reinado do Cardeal para além destes
e dela teve nove filhos, entre os quais D. João,                                                        mesmos jogos. A hipótese de casar e ter filhos
o pai de D. Sebastião.                                                                                  perdeu-se com o tempo e a doença, e a possi-
                                                                                                        bilidade de sucessão de Dª Catarina esfumou-se
  É impressionante como duas proles tão abun-                                                           entre interesses mesquinhos de gente corrupta.
dantes, como foram a de D. Manuel e D. João                                                             Com poucas excepções de resistentes, as elites
III, se extinguiram de forma tão abrupta e dra-                                                         portuguesas foram compradas ou deixaram-se
mática, marcados por um destino amaldiçoa-                                                              fascinar por Felipe II.
do. Àdata da batalha, da linha de descendência
do rei “Venturoso” e em condições de disputar                                                                                      J. Semedo de Matos
a coroa, sobravam o cardeal D. Henrique, Dª                                                                                                    CFR FZ
Catarina de Bragança (filha de D. Duarte) e Fe-
lipe II de Espanha. A Duquesa de Bragança era                                                           N.R.
filha de D. Duarte, o infante mais novo, e Felipe                                                       O autor não adota o novo acordo ortográfico.
II de Dª Isabel de Portugal, filha de D. Manuel
e imperatriz casada com Carlos V. Não é muito

16 MARÇO 2013 • REVISTA DA ARMADA
   11   12   13   14   15   16   17   18   19   20   21