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A MARINHA NO FINAL DA DINASTIA DE AVIS (2)
AS TEIAS DA DIPLOMACIA IBÉRICA
Ocurto reinado do Cardeal D. Henri- fácil visualizar esta teia complexa de casamen- parar às mãos, mas a batalha era muito difícil.
que foi marcado pela incessante bus- tos e filhos, mas entende-se que em 1578 pou- Cristóvão de Moura era uma figura hábil: por-
ca de uma solução sucessória que cos podiam candidatar-se ao trono português.
ultrapassasse o imbróglio em que a morte pre- E o mais poderoso dos candidatos não era se- tuguês nascido na Chamusca, foi pajem da mãe
matura de D. Sebastião deixara o reino. O ab- quer português, o que muito afrontava os povos de D. Sebastião e emigrou para Castela quan-
surdo e a impotência são as palavras que me como nos dizem os documentos da época. do a princesa enviuvou e regressou à sua terra;
ocorrem com maior propriedade para descre- tinha alguma influência na corte madrilena e,
ver a situação vivida em Portugal naquele ano O cardeal D. Henrique foi aclamado rei de sobretudo, sobrava-lhe ambição. Uma ambição
e meio de governo. Mas para que possamos Portugal a 28 de Agosto de 1578, poucos dias que perscrutava o seu caminho na via aberta
medir a sua dimensão é interessante recordar depois de se ter confirmado a morte de D. Se- pela contenda sucessória. Precisava de estar
a sucessiva descendência dos reis de Portugal, bastião e sem que isso merecesse qualquer con- atento ao que ia fazendo D. Henrique de forma
desde o reinado de D. Manuel. Veremos os testação. Mas a complicação futura adivinhava- e transmitir as informações necessárias para que
caprichos que o destino nos pode reservar e -se na sua idade avançada e no facto de não tudo fosse atrasado. Uma das primeiras decisões
como são complexas e inesperadas as vias ter filhos. Felipe II percebera muito cedo que o do cardeal foi pedir dispensa papal dos votos de
sinuosas da tragédia. celibato, para que pudesse casar e ter descen-
Felipe II. dência, mas o tempo urgia. Cristóvão de Moura
Pouco depois de subir ao trono, o “Ven- Ticiano – Museu do Prado. informou desse propósito Felipe II, que tratou de
turoso” casou em primeiras núpcias com criar as condições para que o processo se atra-
Dª Isabel, a viúva do príncipe D. Afonso, o momento era dele, e trabalhou com diligência sasse em Roma. Primeiro o pedido foi recusado
malogrado filho de D. João II, morto prema- para que nada pudesse estorvar o seu caminho. pelo papa, depois foi reavaliado por interposi-
turamente num acidente de cavalo. Retoma- No dia 20 de Agosto de 1578, ainda antes da ção portuguesa e enviado um emissário a Lis-
va assim o projecto de união ibérica do seu entronização do Cardeal e logo que recebeu as boa para se informar e negociar, mas os meses
antecessor e, poucos meses depois, a rainha primeiras notícias de Alcácer Quibir, mandou iam passando e o rei definhava. Todavia, a ac-
dava-lhe um filho, a que foi dado o nome de para Portugal Cristóvão de Moura com uma ção mais decisiva do enviado de Castela desen-
D. Miguel, neto dos Reis Católicos e jurado mensagem formal de condolências e promessas volveu-se junto de gente influente procurando
como dos reinos de Portugal, Castela e Ara- para a coroa e para o povo português, mas com aliciá-la para o seu partido. Os primeiros foram
gão. O príncipe, contudo, não completaria uma intensa agenda política disfarçada, cujo aqueles que D. Henrique condenou e afastou
dois anos de idade. Faleceu no ano de 1500 objectivo era o de manter abertas as portas para do poder acusando-os de terem fomentado a
e está sepultado na catedral de Granada, o seu senhor. D. Henrique sabia bem das in- expedição africana de D. Sebastião. O mais im-
junto ao túmulo dos seus avós. tenções do seu sobrinho castelhano, tanto mais portante de todos foi Pêro de Alcáçova Carnei-
que acompanhara atentamente as manobras ro: exilado para fora da corte sem apelo, foi ele
D. Manuel voltou a casar com outra prin- levadas a cabo no tempo de D. Sebastião, e iria que preveniu o Secretário das diligências de D.
cesa de Castela, a sua cunhada Dª Maria, de fazer o possível para evitar que a coroa lhe fosse Henrique para a sucessão da duquesa de Bra-
quem teria 10 filhos sobrevivos ao nascimen- gança. Mas houve, também, uma distinta classe
to. O mais velho foi D. João III, rei de Portugal, de juristas que Cristóvão de Moura foi compran-
seguindo-se-lhe ordenadamente Dª Isabel (a do progressivamente e obtendo os fundamentos
Imperatriz), Dª Beatriz (duquesa de Sabóia), escritos necessários à garantia dos direitos suces-
D. Luís, D. Fernando, D. Afonso, Dª Maria, D. sórios de Felipe II. São muitos os exemplos, que
Henrique (cardeal rei), D. António e D. Duar- incluem figuras gradas de erudição, lentes da
te. Este último desposou a filha do 4º duque Universidade de Coimbra e pessoas formadas
de Bragança, de quem teria três filhos, entre em Bolonha ou Salamanca, com importantes
os quais Dª Catarina que, como veremos ain- cargos na administração portuguesa. Destaca-se
da, viria a ser uma das candidatas ao trono o caso do Doutor António da Gama, cujo pare-
português, em 1580. Casou uma terceira vez cer foi comprado com um cargo no Conselho
e teve mais dois filhos, mas nenhum deles de Castela e uma tença pecuniária para o filho
viveu até à crise dinástica de 1580. Por seu estudar em Salamanca. Portugal foi palco de jo-
lado, D. João III, seu sucessor no trono, casou gos de poder tremendos e é difícil vislumbrar a
com Dª Catarina, irmã do imperador Carlos V, história do reinado do Cardeal para além destes
e dela teve nove filhos, entre os quais D. João, mesmos jogos. A hipótese de casar e ter filhos
o pai de D. Sebastião. perdeu-se com o tempo e a doença, e a possi-
bilidade de sucessão de Dª Catarina esfumou-se
É impressionante como duas proles tão abun- entre interesses mesquinhos de gente corrupta.
dantes, como foram a de D. Manuel e D. João Com poucas excepções de resistentes, as elites
III, se extinguiram de forma tão abrupta e dra- portuguesas foram compradas ou deixaram-se
mática, marcados por um destino amaldiçoa- fascinar por Felipe II.
do. Àdata da batalha, da linha de descendência
do rei “Venturoso” e em condições de disputar J. Semedo de Matos
a coroa, sobravam o cardeal D. Henrique, Dª CFR FZ
Catarina de Bragança (filha de D. Duarte) e Fe-
lipe II de Espanha. A Duquesa de Bragança era N.R.
filha de D. Duarte, o infante mais novo, e Felipe O autor não adota o novo acordo ortográfico.
II de Dª Isabel de Portugal, filha de D. Manuel
e imperatriz casada com Carlos V. Não é muito
16 MARÇO 2013 • REVISTA DA ARMADA