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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA REVISTA DA ARMADA | 501
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OS REFUGIADOS... E PORTUGAL
“Mendes Pinto regressou a Portugal, tendo ido viver para junto do rio Tejo, na margem oposta a Lisboa. Tornou-se presidente da Misericórdia local, que era
então (…) a principal instituição de caridade do país. Foi aí que escreveu o seu livro…”
In A Primeira Aldeia Global. Como Portugal Mudou o Mundo, Martin Page, 2008
Acrise dos refugiados não deixa ninguém indiferente. As ima- te na cidade uma Mesquita e a comunidade integrou, sem ób-
gens que, de forma pungente, se fixam na nossa alma, bem vio conflito, toda aquela diversidade. Contudo, existem cada vez
como o sofrimento de famílias inteiras são impressionantes. mais jovens desempregados entre os migrantes que connosco
A tarefa de ajudar refugiados já tocou, especialmente, a Marinha. vivem, como sinal da crise, que ainda não passou. Por outro lado,
nem todas as pessoas atingiram o desiderato desejável de obter
Desde que, eu próprio, com a Marinha, trabalhei em países tão uma vida condigna. Disso é testemunho gritante o número de
distantes como Timor Leste e conheci as realidades, no que diz pessoas que ainda vive em bairros degradados, cujas condições
respeito à Saúde, de países africanos e sul-americanos, percebi, têm vindo, todavia, a melhorar. No seu todo, Portugal – um país
de forma clara, que existem dois mundos muito diferentes no verdadeiramente Universal – tem a tradição de ajudar. Está na
que ao bem-estar diz respeito. Um mundo ao qual, com maior nossa génese da qual as Misericórdias dão testemunho mundial.
ou menor dificuldade, Portugal pertence da Europa com Saúde
Pública e hospitais diferenciados e o outro… Neste último grupo, Ora na presente migração teremos que, como é da maior
para a maioria das pessoas, a saúde vem em segundo lugar. O obrigação, cumprir o nosso dever moral e (porque não dizê-lo),
principal objetivo de cada dia é a simples sobrevivência… sim, a cristão… Se existem famílias com fome devem ser ajudadas, se
alimentação de todos os dias, o abrigo, a água potável… precisam de abrigo, devem ser abrigadas. Não parece haver volta
moral para este facto. A deportação – como acontece noutras zo-
Percebi que nesses lugares (que são a maioria dos países do nas do mundo – não é a alternativa. Não se enviam pessoas para
nosso conturbado mundo) a doença é vista como um acidente, a guerra (… ou mesmo para a miséria extrema). O que devemos
a resolver com “uma rápida injeção”, ou pela imediata aceitação porfiar por fazer é, por certo, ajudar as pessoas a ajudarem-se
da incapacidade e da morte. Ninguém acha que tem direito a a si próprias, integrá-las condignamente. Este desiderato nem
saúde garantida, porque também não se lhes atribuem outros sempre foi conseguido com os nossos próprios pobres, de modo
direitos que consideramos garantidos entre nós. Assim, quando que também aqui teremos que melhorar…
vejo esta migração maciça às portas da Europa, penso que estes
povos pertencem seguramente a este mundo, o mundo dos “sem Já o disse noutros escritos. As Forças Armadas têm sido um
direitos”. exemplo de integração a vários níveis. Existem nas fileiras da Mari-
nha militares, em todos os postos, das mais variadas etnias – ago-
Continuam a chegar cheios de sonhos. Procuram refazer (… e ra todos Portugueses. Também leio com orgulho todas as entre-
o termo é largamente utilizado) a sua vida na Europa presente, vistas já publicadas a militares que prestaram serviço em missões
fortemente empobrecida e ela própria com menor capacidade como o “Frontex”2… Estou certo que outros sentirão o mesmo,
para suprir as necessidades sociais dos seus povos. Uma Europa pois são missões como estas que definem uma instituição.
que, precisamente, tem cada vez menos empregos para fornecer,
menos segurança no trabalho e, por todo o lado, apresenta uma Sempre que fui médico no estrangeiro longínquo obtive mais
crise de valores sociais (… pela falta de suporte económico, para do que dei em amizade em agradecimento. Na verdade, há muito
os suportar). que sei que quem nunca teve nada sabe agradecer melhor que
ninguém. Os novos médicos navais têm cumprido a portuguesa
Escreve-se muito sobre os prós e contras da “Grande Migra- tradição humanitária de forma exemplar e são para mim particu-
ção”, contudo pouco parece claro. Por exemplo, não se explicou lar fonte de orgulho. Não é em vão que Portugal se agiganta em
inteiramente o porquê atual dos avassaladores números da mi- momentos de dificuldade. Sim, e é também verdade que, como
gração (já que os conflitos na região são endémicos e mesmo o Mendes Pinto, sempre ligámos bem a universalidade à ajuda aos
recente conflito Sírio já leva anos1), nem a não fixação em países outros, para nossa grande glória.
mais próximos e, em teoria, com maiores afinidades culturais e
linguísticas. Ao contrário, os migrantes parecem muito bem in- Doc
formados. Muito poucos procuram o empobrecido Sul da Euro-
pa, em que nos encontramos. Procuram, isso sim, o Norte, que se Notas
admite rico e pleno de oportunidades.
1 Ao melhor do meu conhecimento, desde 2011 e sem fim imediato à vista.
Ora, morando eu, por certo, na cidade mais exótica e cos- 2 F rontex – Operação conjunta para o apoio aos migrantes no Sul da Europa, em que
mopolita de Portugal, a Amadora, sei que Portugal recebe bem
quem precisa. Na paróquia da Amadora reúnem-se facilmente, Portugal e a Marinha participaram.
num qualquer domingo, 15 a 20 nacionalidades distintas. Já exis-
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