Page 29 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 503
ESTÓRIAS 18
VIAGENS SALGADAS - AÇORES
DEPOIS DE ÁFRICA, O ATLÂNTICO
Foto Sara de Sintra
Os Açores a bordo do Navio Patrulha Fogo, em nove sofridos assinalar essa actividade. A Lagoa das Sete Cidades, as Furnas,
meses de enjoo e incomodidade. a Lagoa do Fogo, a Lagoa do Congro, entre outros, são lugares
Pode ser que haja navios mais duros para o mar que estes pa- maravilhosos, onde naquela época, praticamente, não havia ex-
trulhas franceses, mas deve ser difícil. Tinham um balanço incon- ploração turística.
cebível à custa de um momento endireitante diabólico. Acabei a
comissão com dois calos nos cotovelos de me apoiar nas anteparas Mas foi o Pinhal da Paz o local em S. Miguel que mais me en-
para não cair. feitiçou pela beleza da sua flora exuberante, com as azáleas e as
buganvílias em flor formando cachos de pétalas de cores garridas
Entrámos uma vez na Praia da Vitória com o cromato de zinco à que depois caíam para as veredas, atapetando-as de cor e silên-
mostra em todo o costado do navio. A tinta havia sido tirada pelo cio. Parecia que toda a paz e beleza do mundo ali morava, numa
mar, assim como duas antenas de vara de radiocomunicações, as calmaria que enchia a alma e punha luz nos olhos. Lá em baixo, o
coberturas em lona das peças, do ouriço e do guincho do ferro cor- mar, agora sereno e muito azul, à espera dum mergulho.
tadas em tiras e a balaustrada arrancada. Mais parecia o “Yellow
Submarine” dos Beatles do que um vaso de guerra. Transportáva- Não podia deixar de registar um aspecto muito curioso de in-
mos uns soldados que iam “à terra” de licença e que já punham em sularidade radical, que naquele tempo se vivia nas ilhas do Gru-
causa o regresso às fileiras no final das curtas férias. po Ocidental. Os Franceses tinham uma estação de rastreio nas
Flores, tendo ali construído um heliporto e mais tarde um aeró-
Outra vez fomos às Flores buscar uma criança com uma apendi- dromo para pequenas aeronaves militares. Mesmo assim, era o
cite aguda para ser operada no Faial. A mesma era acompanhada Patrulha que prestava socorro em emergências com temporal, já
por uma enfermeira para a assistir na viagem. Quando chegámos à que os meios aéreos não podiam ser utilizados.
Horta, a criança estava bem e a enfermeira quase precisou de ser
internada, pois pouco faltou para entrar em coma, devido ao enjoo. Virada para esta ilha e à sua vista fica o Corvo, onde tive o pri-
vilégio de desembarcar, já que raramente isso era facultado pelo
Cada vez que íamos para o mar, com bom ou mau tempo, a roti- estado do mar ou pelas tarefas agendadas para o navio.
na cumpria-se religiosamente: enfermeiro à prancha com os com-
primidos para o enjoo e toda a gente obrigada a engolir um. Havia Era domingo, não havia ninguém na única rua da terra, mas
os que diziam que os ditos lhe tiravam aquilo que, pelo menos a ouvia-se uma espécie de cantilena que vinha do lado da Igreja.
bordo, lhes não fazia falta de todo. Paciência! Apesar do “enjoo ser Para lá nos dirigimos. Então assisti a uma cena que não sou capaz
serviço”, havia que garantir que todos estavam em condições de de reproduzir na íntegra por me faltar a arte e o engenho. Parecia
poder realizar o trabalho que lhes competia. uma cena saída directamente dum filme do Manoel de Olivei-
ra, com a cor laranja de um pôr do Sol de Verão como fundo,
O Inverno em S. Miguel no final da década de sessenta não era um átrio de Igreja pouco cuidado, mas onde se desenrolava um
fácil. Os filmes chegavam a estar uma semana seguida em exibi- espectáculo teatral sobre Inês de Castro, num Português arcai-
ção, por falta de avião, numa terra que não tinha grandes alterna- co, com sotaque açoriano, de que se não percebia patavina. Só
tivas para gente nova. O café, à tarde, era o local de encontro. Aí me ficou no ouvido qualquer coisa como - “Ei Senhô! Pobre Inâs!
se juntava toda a gente jovem da terra. Aí se trocavam olhares, se Quien la matou?”
combinavam encontros e se planeavam festinhas.
Ferreira Júnior
Com o chegar do bom tempo, as coisas melhoraram em termos CMG
de mar e em termos de terra.
Nota: Extraído do livro TERRA-MAR-E-GUERRA, Cogitações de um Marinheiro Alentejano.
Só então foi possível apreciar a maravilha que constitui este ar-
quipélago atlântico, de origem vulcânica, onde ainda é possível N.R. O artigo não respeita o novo acordo ortográfico.
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