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REVISTA DA ARMADA | 503

ESTÓRIAS                                                              18

VIAGENS SALGADAS - AÇORES

DEPOIS DE ÁFRICA, O ATLÂNTICO

                                                                                                                                                                  Foto Sara de Sintra

Os Açores a bordo do Navio Patrulha Fogo, em nove sofridos            assinalar essa actividade. A Lagoa das Sete Cidades, as Furnas,
     meses de enjoo e incomodidade.                                   a Lagoa do Fogo, a Lagoa do Congro, entre outros, são lugares
   Pode ser que haja navios mais duros para o mar que estes pa-       maravilhosos, onde naquela época, praticamente, não havia ex-
trulhas franceses, mas deve ser difícil. Tinham um balanço incon-     ploração turística.
cebível à custa de um momento endireitante diabólico. Acabei a
comissão com dois calos nos cotovelos de me apoiar nas anteparas        Mas foi o Pinhal da Paz o local em S. Miguel que mais me en-
para não cair.                                                        feitiçou pela beleza da sua flora exuberante, com as azáleas e as
                                                                      buganvílias em flor formando cachos de pétalas de cores garridas
   Entrámos uma vez na Praia da Vitória com o cromato de zinco à      que depois caíam para as veredas, atapetando-as de cor e silên-
mostra em todo o costado do navio. A tinta havia sido tirada pelo     cio. Parecia que toda a paz e beleza do mundo ali morava, numa
mar, assim como duas antenas de vara de radiocomunicações, as         calmaria que enchia a alma e punha luz nos olhos. Lá em baixo, o
coberturas em lona das peças, do ouriço e do guincho do ferro cor-    mar, agora sereno e muito azul, à espera dum mergulho.
tadas em tiras e a balaustrada arrancada. Mais parecia o “Yellow
Submarine” dos Beatles do que um vaso de guerra. Transportáva-          Não podia deixar de registar um aspecto muito curioso de in-
mos uns soldados que iam “à terra” de licença e que já punham em      sularidade radical, que naquele tempo se vivia nas ilhas do Gru-
causa o regresso às fileiras no final das curtas férias.              po Ocidental. Os Franceses tinham uma estação de rastreio nas
                                                                      Flores, tendo ali construído um heliporto e mais tarde um aeró-
   Outra vez fomos às Flores buscar uma criança com uma apendi-       dromo para pequenas aeronaves militares. Mesmo assim, era o
cite aguda para ser operada no Faial. A mesma era acompanhada         Patrulha que prestava socorro em emergências com temporal, já
por uma enfermeira para a assistir na viagem. Quando chegámos à       que os meios aéreos não podiam ser utilizados.
Horta, a criança estava bem e a enfermeira quase precisou de ser
internada, pois pouco faltou para entrar em coma, devido ao enjoo.      Virada para esta ilha e à sua vista fica o Corvo, onde tive o pri-
                                                                      vilégio de desembarcar, já que raramente isso era facultado pelo
   Cada vez que íamos para o mar, com bom ou mau tempo, a roti-       estado do mar ou pelas tarefas agendadas para o navio.
na cumpria-se religiosamente: enfermeiro à prancha com os com-
primidos para o enjoo e toda a gente obrigada a engolir um. Havia       Era domingo, não havia ninguém na única rua da terra, mas
os que diziam que os ditos lhe tiravam aquilo que, pelo menos a       ouvia-se uma espécie de cantilena que vinha do lado da Igreja.
bordo, lhes não fazia falta de todo. Paciência! Apesar do “enjoo ser  Para lá nos dirigimos. Então assisti a uma cena que não sou capaz
serviço”, havia que garantir que todos estavam em condições de        de reproduzir na íntegra por me faltar a arte e o engenho. Parecia
poder realizar o trabalho que lhes competia.                          uma cena saída directamente dum filme do Manoel de Olivei-
                                                                      ra, com a cor laranja de um pôr do Sol de Verão como fundo,
   O Inverno em S. Miguel no final da década de sessenta não era      um átrio de Igreja pouco cuidado, mas onde se desenrolava um
fácil. Os filmes chegavam a estar uma semana seguida em exibi-        espectáculo teatral sobre Inês de Castro, num Português arcai-
ção, por falta de avião, numa terra que não tinha grandes alterna-    co, com sotaque açoriano, de que se não percebia patavina. Só
tivas para gente nova. O café, à tarde, era o local de encontro. Aí   me ficou no ouvido qualquer coisa como - “Ei Senhô! Pobre Inâs!
se juntava toda a gente jovem da terra. Aí se trocavam olhares, se    Quien la matou?”
combinavam encontros e se planeavam festinhas.
                                                                                                                                                 Ferreira Júnior
   Com o chegar do bom tempo, as coisas melhoraram em termos                                                                                                 CMG
de mar e em termos de terra.
                                                                      Nota: Extraído do livro TERRA-MAR-E-GUERRA, Cogitações de um Marinheiro Alentejano.
   Só então foi possível apreciar a maravilha que constitui este ar-
quipélago atlântico, de origem vulcânica, onde ainda é possível       N.R. O artigo não respeita o novo acordo ortográfico.

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