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REVISTA DA ARMADA | 503

ESTADO ISLÂMICO

LIMITES DA ESTADUALIDADE: UM OBSTÁCULO
AO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL?

As seculares democracias pluralistas ocidentais são o resulta-     ção secular de Estado, defendendo em alternativa uma conce-
     do lógico da filosofia liberal, sendo-lhes reconhecido o es-  ção teocrática ou clerical da autoridade soberana, substituindo
forço na edificação de modelos de sociedade constituídos por       por critérios religiosos os critérios políticos no tratamento dos
um poder político democrático, com uma ordem jurídica axio-        conflitos. Em segundo lugar, ao abandonarem a distinção de al-
logicamente justa e vinculados internacionalmente à tutela dos     vos civis e alvos militares, o que significa igualmente a rejeição
direitos fundamentais. A dignidade humana é hoje entendida         do princípio central de um instituto fundamental da sociedade
como um dogma da confluência jurídica universal, identifican-      internacional moderna, a guerra justa. Decorrente da dignidade
do-se como sentido único de um Direito justo.                      da pessoa humana, as sociedades com fundamentos liberais re-
                                                                   tiraram o corolário da humanização dos conflitos armados, en-
  Vivemos num mundo desterritorializado, onde não existem          contrando-se vedado, em caso de conflito armado, a escolha ili-
barreiras de tempo e de espaço para que as pessoas comuni-         mitada de métodos e meios de guerra, proibindo-se a utilização
quem. A disseminação, quase instantânea, de uma onda revo-         de armas, projéteis e materiais ou métodos que causem danos
lucionária de manifestações e protestos contra o regime dita-      supérfluos, tal como se encontra vedada a ordem da execução
torial de Zine El Abidini Ben Ali, na Tunísia, em dezembro de      de sobreviventes. Na perspetiva ocidental, a existência de con-
2010, onde o povo se insurgiu reivindicando valores liberais,      flitos armados pauta-se por regras jurídicas que procuram hu-
foi o mote para um fenómeno político-social, que se apelidou       manizar as condições dos seres humanos envolvidos, visando,
de «Primavera Árabe». O regime liderado por Bashar al-Assad,       desta forma, substituir em cenários de guerra uma proliferação
não ficou imune à expressão da Primavera Árabe por diversos        ajurídica em matéria de atentados contra a pessoa humana. O
países do Magreb e do Médio Oriente, e entre tumultos e con-       ordenamento jurídico limita assim a arbitrariedade, crueldade
testações, o seu exército não foi capaz de manter a ordem so-      e maldade do ser humano contra o seu semelhante. A rejeição
cial, levando a que os rebeldes lograssem congregar apoios com     do princípio “ius in bello” enquadra-se no “modus operandi” do
vista à queda do regime “ditatorial” liderado pelo presidente      ISIS, que visa quebrar a vontade política, utilizando táticas de
Sírio. Com o país fragmentado, a Síria mergulha numa profunda      guerrilha e guerra assimétrica, com recurso a crime organizado
Guerra Civil, e é neste contexto que surgem atores que se ali-     e uso de meios terroristas contra a população civil e alvos não
mentam do desespero, do sentimento assumido de opressão e          militares. Esta alteração doutrinária da guerra executada pelo
da visão do Ocidente como invasor. A partir desta efeméride,       ISIS revela ainda um conhecimento perfeito das vulnerabilida-
destaca-se na imprensa internacional a expressão «ad-Dawlah        des das sociedades ocidentais. O que as sociedades ocidentais
al–`Islāmiyyah», designada pelos média como Islamic State of       chamam de alvos civis, para os terroristas é apenas o flanco
Iraq and Levant (ISIL) ou Islamic State of Iraq and Syria (ISIS).  mais fraco de uma sociedade inimiga e opressora.
Este movimento islâmico radical apresenta-se como um órgão
de base territorial, com autonomia técnica, financeira e admi-       Alicerçado no respeito pela dignidade da pessoa humana, o
nistrativa, usa a identidade árabe e a mitologia de antigos im-    estado de direitos fundamentais serve de garantia à inviolabili-
périos, tem uma ideologia de pan-islamismo e orienta-se por        dade da mesma dignidade, que é inerente a cada pessoa indivi-
uma interpretação extremista da religião islâmica, tendo como      dual e concreta. Trata-se de um modelo de sociedade política,
fundamento desta atitude arrogante o desprezo pelo mundo           vinculada internacionalmente à tutela dos direitos fundamen-
moderno e a restrição do conceito de liberdade, apresentada        tais, constituída por um poder político democrático, com uma
não como um princípio universal, mas como uma especificida-        ordem jurídica axiologicamente justa, que possui normas dota-
de da cultura ocidental.                                           das de eficácia reforçada no que concerne aos direitos funda-
                                                                   mentais.
  Salienta-se que a resistência à ordem internacional liberal en-
volve igualmente um ataque a princípios constitutivos das so-        A relevância dada ao sentido conceptual da dignidade da
ciedades ocidentais: Em primeiro lugar, por rejeitarem a conce-    pessoa humana nas nações ocidentais conjuga quatro verten-

6 JANEIRO 2016
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