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REVISTA DA ARMADA | 503
tes: 1ª. O contributo judaico-cristão, configurando a pessoa de certas formas de combate ao terrorismo. Uma prevalência
humana como um ser criado à imagem e semelhança de Deus, absoluta do valor da segurança pode ser tão nefasta para os
dotado de valor sagrado; 2ª. A percetiva renascentista deixa- direitos fundamentais como o mais bárbaro e cobarde atenta-
da por Pico de Mirandola que, reconhecendo a cada pessoa a do terrorista. Esse é, alias, o trunfo dos movimentos terroristas
capacidade de determinar o seu próprio destino, articula a li- que, independentemente de qualquer atentado, exercem uma
berdade e a soberania da vontade; 3ª. A máxima de que uma psicologia de terror, instigando a prevalência da segurança so-
pessoa é sempre um fim em si mesma, não podendo ter preço bre a liberdade, fazendo cair os governantes na armadilha pro-
e nunca sendo válida a sua transformação ou degradação em gramada pelos terroristas contra as instituições democráticas.
meio, coisa ou objeto, enraizada pelo pensamento kantiano; 4ª. A subtileza da ameaça traçada ao estado de direitos humanos
O movimento existencialista, deixando claro que não se trata de resulta da necessidade de segurança provocada pelo perigo de
um conceito abstrato ou transpersonalista da pessoa humana, terrorismo. Os terroristas adquirem um poder reconfigurado da
antes a dignidade humana tem sempre como referencial cada relação entre a segurança e liberdade na democracia.
ser humano vivo e concreto.
O autoproclamado Estado Islâmico não é comparável a nada
A dignidade humana é hoje entendida como um dogma da que a história nos tenha ensinado. É um inimigo comum da
confluência da consciência jurídica universal, identificando- humanidade que nasceu num mundo onde as fronteiras são
-se como sentido único de um Direito justo, ou seja, servindo tão ténues como a linha que separa o aliado do inimigo, deve
com valor absoluto único e inviolável, cada ser humano vivo ser contido, enfraquecido e extinto.
e concreto. Este princípio consubstancia um valor cimeiro dos
ordenamentos jurídicos, sendo a base de toda a ordem consti- Do exposto, torna-se evidente que o autoproclamado Estado
tucional, sendo que é nela que reside o fundamento, o limite Islâmico representa uma ameaça aos valores seculares e libe-
e o critério da validade do Direito. Possuindo assim um efeito rais dominantes nas sociedades ocidentais, com contornos ide-
irradiante sobre todo o restante ordenamento jurídico, ditando ológicos e políticos bem definidos.
normas permissivas ou proibitivas.
A natureza radical do ISIS resulta dos meios e objetivos uti-
Dos inúmeros obstáculos à dignidade da pessoa humana e lizados, ou seja, através do recurso à guerra e ao terrorismo,
consequentemente ao nível de direitos humanos já alcançados, prosseguiram a instalação de regime político islâmico com base
salienta-se a intolerância religiosa, personificada no fundamen- territorial, redesenhando o mapa do médio oriente, e almejan-
talismo religioso, que acarreta ameaças múltiplas à cultura do do tomar o controlo de um território ainda maior.
respeito pelos direitos fundamentais. O fundamentalismo reli-
gioso, no caso concreto, o fundamentalismo religioso islâmico, É evidente que tudo isto constitui um desafio aos países oci-
desvaloriza a vida humana segundo uma aposta total e abso- dentais, e a natureza da resposta será decisiva para o futuro
luta na felicidade após a morte, fazendo da lei religiosa fonte da ordem internacional. Os acontecimentos recentes permitem
da lei civil. Este fundamentalismo pode provocar uma rotura antecipar algumas conclusões:
nas bases no modelo de estado de direitos humanos a dois ní-
veis distintos: 1º. O ser humano, desde a sua própria vida até Em primeiro lugar, sempre que ocorram ataques às socie-
à liberdade de expressão e de consciência, surge desvalorizado dades amantes da paz, ou seja, fundadas sobre o princípio da
perante a religião, desaparecendo ou relativizando o valor da dignidade da pessoa humana, a resposta terá necessariamente
pessoa como um alicerce do estado. O fundamentalismo reli- uma natureza militar e decisiva, pois não podemos ser toleran-
gioso próprio dos estados islâmicos rejeita qualquer ideia de es- tes perante a intolerância, como refere o Professor Paulo Ote-
tado de direitos fundamentais, ou estado de direitos humanos; ro: “a necessidade de salvar uma pluralidade de seres humanos
2º. Visando a concretização dos seus propósitos, o fundamen- nunca torna lícito sacrificar a vida de um só ser humano, salvo
talismo islâmico utiliza todo um conjunto de meios violentos, se este representar a fonte de agressão intencional e delibera-
substituindo a tolerância pela tortura e execução dos oposito- da de todos aqueles que têm a sua vida em risco”.
res internos e recorrendo a atentados terroristas para contra-
riar inimigos externos. Em segundo lugar, os estados pluralistas do ocidente terão
provavelmente que reconhecer os limites da universalização de
Neste último ponto, o fundamentalismo islâmico tem susci- modelos políticos liberais e seculares, como a democracia. Nas
tado o repensar das defesas dos Estados ocidentais. Estando a sociedades islâmicas, a religião tem um peso muito significativo
doutrina muito dividida, no que concerne ao tratamento a dar a na vida pública, tornando impossível reduzir o islão à vida pri-
quem, aproveitando-se da tolerância das sociedades pluralistas vada dos cidadãos. No entanto, isto não significa a radicalização
e democráticas, visa destruir essa mesma tolerância. dessas sociedades, como é conhecido, existem igualmente ver-
sões moderadas do islamismo político.
Ainda em matéria de intolerância, um outro fator de inquieta-
ção do estado de direitos humanos é protagonizado a nível po- Em terceiro lugar, pressupondo que as fronteiras do Estado
lítico através do terrorismo. A segurança tem vindo assim a tor- Islâmico se encontram desenhadas e circunscritas à área co-
nar-se um valor prevalecente sobre a liberdade, invertendo-se nhecida, devemos ou não compactuar com a intolerância, arro-
um dos postulados do Estado de direitos humanos. Existe hoje gância e brutalidade? Compactuando, temos ainda a obrigação
uma suspeita geral sobre os cidadãos em abstrato, a liberdade de acolher as centenas de milhares de refugiados, proporcio-
debilitou-se perante situações de potencial risco, observando- nando-lhes bem-estar social, premissa que traduz uma dimen-
-se em certas ocasiões um retrocesso dos valores já alcança- são axiológica da própria dignidade humana, ou seja, mesmo
dos. Nesta balança de risco, onde a liberdade é jogada com a com o Estado Islâmico territorialmente circunscrito, mantêm-se
segurança, o estado de direitos humanos pode estar refém do o desafio ao constitucionalismo global.
terrorismo ou, por paradoxal que possa parecer, pode ser refém
Cuco de Jesus
2TEN
JANEIRO 2016 7