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NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA
PARA NOSSA GLÓRIA...
…Ainda consigo lembrar-me de tudo o que sucedeu naquele ano, até ao
mais pequeno pormenor. Recordo-o várias vezes, dando-lhe vida de novo, e
percebo que quando o faço sinto sempre uma estranha combinação de tris-
teza e alegria…
In Um Momento Inesquecível, Nicholas Sparks, 1999
Fui, nas férias letivas do Natal, para Lagos. Cidade antiga, ain- mente no enquadramento que agora se vive…
da preservada, que tenho no coração. Visitei alguns amigos, Foi então que juntei as duas emoções: a recordação do meu
novos e velhos, antigos marinheiros, que comigo partilham a
afeição àquela cidade. Para mais, muitos não o sabem, a messe curso (em que era civil) e a saída atual de médicos jovens e ca-
Militar de Lagos é agora dirigida por um Oficial de Marinha – uma pazes. Lembrei-me então do livro acima citado e tentei perceber
boa novidade, imposta pelos tempos modernos que se pautam quando é que na carreira passamos de médicos a marinheiros,
pela partilha. ou, se quiser o leitor, mais precisamente a médicos-marinheiros…
Encontrei um camarada de curso, sim, da Faculdade de Medici- Meditei, meditei e cheguei à conclusão que tem que ser uma
na, e lembrei-me de imediato do tempo partilhado nos bancos da experiência emocional. Foram um conjunto de experiências (a
Faculdade, dos exames e de tudo o mais que marca um processo maior parte a bordo dos navios), a relação especial que temos
académico. Ele seguiu a carreira médica civil, como especialista com os nossos doentes e a própria cultura inclusiva da Marinha.
dos hospitais. Apresenta agora muitas queixas, neste tempo de Isto mesmo posso constatar nas picardias a que sou sujeito pelos
crise: sobrecarga de trabalho, gestão sem humanidade, enfim, camaradas de Marinha, com que agora partilho a carteira, como
redução acentuada da satisfação e do retorno económico… Pa- se de um código muito especial se tratasse…
recia cansado…
De muitos episódios navais, tenho também “uma estranha
Ao contrário, referiu que eu parecia feliz, mais calmo, do que a combinação de tristeza e alegria”… Alegria pela bela recorda-
memória dele recordava como recordação minha. Inquiriu sobre ção…Saudade, por um tempo antigo, irrepetível. Talvez seja esta
o que estava eu a fazer neste momento. Disse-lhe que frequen- combinação que nos facilita a passagem ao desiderato de mari-
tava um curso para promoção e que, portanto, estava mais afas- nheiros…
tado da realidade hospitalar. Perguntou-me, naturalmente, se o
curso era para médicos? Expliquei-lhe que não, que havia Oficiais Aqui está um tema muito interessante para um “Trabalho Indi-
dos três ramos, das mais variadas especialidades, desde Oficiais vidual”… Contudo, a adaptação é outra característica dos milita-
de Cavalaria, do Exército Português, até Oficiais Pilotos, da Força res e vou ouvindo as Teorias de Mintzberg, informações sobre a
Aérea, passando pelas várias classes da Marinha… Marinha de Comércio (…percebi que já não se deve usar o termo
“Marinha Mercante”), vou conhecendo evoluções culturais rela-
Sorriu e quis saber mais sobre o currículo do curso. Lá lhe ex- cionadas com a cibercultura e tento imaginar o papel abrangente
pliquei que se tratava de um curso vocacionado para os cargos que se vai ter que exigir aos militares do futuro…
mais altos das Forças Armadas, que incluía temas de Economia,
Gestão, Estratégia e alguns outros temas difíceis de enquadrar, De toda a forma, percebo, desde já, que a característica prin-
mas úteis para cultura geral, ou para um melhor entendimento cipal dos médicos marinheiros se descreve como uma ligação,
da realidade portuguesa e internacional. íntima, sentimental, à instituição que representam e uma certa
noção muito própria de humanidade que ela representa. Esta
Saiu-lhe então a frase que se me entranhou na alma: ligação emocional profunda e, para nossa glória, uma extraordi-
-É pá, tu já és mais marinheiro do que médico?! nária capacidade de adaptação (…ao embarque, uma realidade
Desta vez fui eu que sorri. Mas não disse nada. Lá no fundo, complexa e exigente…) são parte integrante do tirocínio do médi-
contudo, achei que a imagem se aproximava um pouco daquilo co que aspira a marinheiro…
que realmente sou… Despedimo-nos com a promessa de nos vol-
tarmos a encontrar dali a algum tempo… Oxalá pudesse eu transmitir esta realidade aos médicos que
Num outro dia, encontrei, casualmente, um Médico Naval que agora partem e a tantos que não nos percebem… Para nossa
vai abandonar as fileiras. Sinto-me triste sempre que alguém sai glória, finalmente admito que nunca devemos perder o Norte, a
das fileiras dos Médicos Navais. Ficamos mais pobres em vários nossa forma naval de estar. A nossa paixão…
sentidos, já que somos poucos e todos são necessários, especial-
Doc
30 FEVEREIRO 2016