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REVISTA DA ARMADA | 504

ESTÓRIAS                                                                                                                19

"HOMENS DO MAR"

Daquela comissão do NRP Bartolomeu Dias (Aviso de                                                                                                         Foto do autor
     1ª classe) à Índia (1953/1955), não haveria nada de
especial a relatar, não fora o caso, felizmente invulgar, de         uma dúzia de “Satyagrahs” lá capturados pela polícia (a bordo
termos tido três Comandantes: Azevedo e Silva, Liberal da            foram sempre bem tratados…), trocámos sinais luminosos com
Câmara e Gabriel Prior. Se neles a distinção era factor co-          uma fragata da marinha da União Indiana. O sinaleiro de quarto
mum, já não o eram as suas personalidades. Ao lembrar                recebeu um “K” (do Código Internacional de Sinais, que significa:
uma pessoa, a sua figura, ocorre-nos uma frase, um gesto,            Quero comunicar/Quem são?). “Querem saber o nosso nome”,
uma atitude, uma característica, que fica “arquivada” na             disse o marinheiro sinaleiro. Resposta pronta do Comandante:
nossa memória, que o tempo, inexorável, irá apagando.                “HOMENS DO MAR”. É sabido que “estas gentes” (leia-se, o gen-
                                                                     tio indiano) assim classificavam os nossos marinheiros, fortes e
    Recordo, por exemplo, quando navegando no Mar Ver-               barbudos, surgidos naquela região aquando das descobertas,
melho, subira eu à casa da pilotagem e perguntava ao te-             pois eram nascidos do mar. Assim foi respondido. Evidenciava-
nente Casqueiro, oficial da navegação, que estava debruça-           -se desta forma a coragem, a determinação e o patriotismo do
do sobre a carta, onde estávamos. Entrou o nosso Coman-              nosso Comandante Liberal da Câmara. A fragata, “devidamente”
dante Azevedo e Silva que, logo, apercebendo-se do meu               informada, foi à sua vida.
interesse, apontou o local e disse: “Estamos aqui!”. E fazen-
do dos dedos indicador e médio compasso, deslizou-os na                 Eis-nos chegados a Mormugão (mais concretamente a Dona
carta e rematou: “Às 2 (da manhã) estamos a passar pelo              Paula), onde fundeámos. Poucos dias depois, surpreendente-
estreito de Bab-el Mandeb”! Não me deitei e a essa hora              mente para a guarnição, que não para o nosso infatigável Ime-
lá estavam os vários faróis a “avisar-nos”. Entráramos no Índico.    diato CTEN Adelino Vieira e o nosso médico Dr. Leal, toca à faina.
Nunca mais esqueci isto. Passados alguns meses fomos a Ceilão        Saímos para o mar e após algumas horas de navegação, em pleno
levar o nosso Comandante ao aeroporto, onde tomaria um avião         Índico, o Comandante Liberal da Câmara realizou o seu outro so-
para Lisboa. Teve a presença de quase toda a guarnição numa          nho… morrer no mar, como Afonso de Albuquerque.
despedida deveras emocionante. Foi como se tivéssemos perdi-
do um pai, um amigo. Soube mais tarde que tinha sido operado           …E chegou-nos o nosso terceiro comandante, o CMG Gabriel
nos Estados Unidos e do seu falecimento já em Lisboa.                Prior, que completou a comissão de serviço. E, mal chegados a
                                                                     Lisboa, já sentia saudades… do mar.
   Em sua substituição, o Comandante Liberal da Câmara. Açoria-
no ilustre, católico (missa na tolda todos os domingos), transpira-                                                     Teodoro Ferreira
va patriotismo, era um sonhador. Ele não dormia. E com o navio                                                               1TEN SG REF
fundeado, era vê-lo a qualquer hora, dia ou noite, passeando no
convés ou parado, olhando o infinito…                                N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.

   Com o navio pairando em frente de Diu para desembarcar um         Notas
pequeno contingente de soldados moçambicanos, na sua maio-           1 O cruzador Delhi era o ex-Achilles, neo-zelandês, que com o Ajax, o Cumberland e
ria “Landins” (que se destacavam pelos seus físicos pujantes e
que apreciavam, mais do que nós, guarnição, o “tintol do paiol”, a    o Exeter, ingleses, encurralaram o couraçado alemão Admiral Graf Spee, no Rio da
que chamavam “Água de Lisboa”), o Comandante foi a terra e fez-       Prata, Montevideu, Uruguai, em Dezembro de 1939.
-se acompanhar de alguns elementos da guarnição para uma visi-
ta à fortaleza. Subimos a rampa e já no terraço mirou tudo muito
bem. Afagou carinhosamente uma velha peça, sopesou uma bala
de pedra e, cuidada e religiosamente, pousou-a no mesmo lu-
gar. Impressionante. À saída, uns passos andados, voltou-se para
a fortaleza e, visivelmente emocionado, disse-nos: “Realizei o
maior sonho da minha vida: Pisar a fortaleza de Diu! Já posso
morrer!”. Ficámos todos em silêncio, perplexos, olhando de sos-
laio uns para os outros.

   Numa altura de alguma tensão com as invasões de “Satya-
grahs” (pacíficas, é certo) aos nossos territórios de Diu, Damão,
Nagar-Aveli e Goa, e com manobras navais onde entrava, con-
forme sabíamos, o cruzador Delhi1 e a sua escolta de fragatas,
com passagens frequentes ao largo, era natural um certo nervo-
sismo da guarnição, que não do nosso comandante. Certa noite,
navegando de Damão rumo a Goa e trazendo a bordo cerca de

28 FEVEREIRO 2016
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