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PASSAGEIROS INDESEJÁVEIS
Não é esta a primeira vez que aqui se Ramalho Ortigão duvidava mesmo que
aborda a existência de animais indese- as baratas, que classificava como perten-
jáveis a bordo; estou em crer, aliás, que cente a uma nova espécie, a barata D.
todos quantos andam no mar já se depa- João I, pudessem ser classificadas como
raram com a presença, a bordo, de várias baratas pois, devido ao seu tamanho,
espécies dessas criaturas. mais deveriam ser classificadas como re-
ses, sendo que as mais pequenas tinham
Nalguns casos, tal presença apresenta entre 4 a 5 cm de comprido e, na sua gran-
uma regularidade e constância tais que, de maioria, até dispunham de asas.
não raro, alguns adquirem nomes pró-
prios, só lhes faltando terem cartão de Afirmava ainda que, para além de um
detalhe para serem considerados efecti- cheiro nauseabundo, as baratas apre-
vos tripulantes. sentavam o vigor dos tigres, a vileza das
moscas e a infâmia dos percevejos, acres-
Não sendo uma situação que, usual- centando que não seria de excluir a pos-
mente, constitua motivo de conversa ou sibilidade, bem presente, dos tripulantes
tão-pouco de lamentação, a existência serem por elas comidos.
destes passageiros não é do conhecimen-
to geral da população. O artigo lamentando a situação termina
desta forma:
Que eu saiba, uma das poucas vezes em
que o assunto teve divulgação generaliza- “Se algum resto de tradição, de histó-
da ficou a dever-se ao escritor Ramalho ria, de valor existe vivo em Portugal essa
Ortigão que, num dos volumes d’As Far- pequena amostra do que foi um tesouro
pas, o abordou. desbaratado e extinto é a Marinha que o
guarda.”
Corria então o ano de 1872 e a corve-
ta D. João I, navio construído em Damão, Com. E. Gomes
em 1828, com recurso a muitos materiais
resultantes do abate da corveta Infante Notas
D. Manuel, ia seguir para uma viagem de Nota: A viagem não correu como estava planeada pois o
curso de 15 guardas-marinhas, viagem navio, comandado pelo Capitão-Tenente Augusto Victor
essa que tinha como destinos a Madeira, de Andrade, não chegou a escalar a Madeira, arribou a
Cabo Verde, Angola, Cabo da Boa Espe- Cabo Verde e veio a ficar em Luanda, onde, em 1874, foi
rança e Açores. abatido. No relato de episódios da viagem que Celesti-
no Soares, um dos guardas-marinhas, deixou escrito nas
Ramalho Ortigão, ou porque lhe disse- Narrativas Navais, não consta que, contrariamente aos
ram ou porque assistiu in loco, começa temores de Ramalho Ortigão, algum tripulante tivesse
por se manifestar espantado com as pés- sido comido.
simas condições de alojamento dos guar-
das-marinhas a bordo, espanto esse que, Fonte: As Farpas, Novembro de 1872
digo eu, só poderá ter quem nunca teve Três Séculos no Mar, vol. 13
de embarcar em número muito superior à
capacidade de alojamento dos navios. N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
O que mais o impressionou, no entanto,
fora a constatação de que o navio era “um
assombroso viveiro de baratas“ em nú-
mero de tal forma grande que, acreditava
aquele autor, se por fantasia desapareces-
sem todas as baratas do mundo, o núme-
ro delas a bordo da corveta era suficiente
para um novo repovoamento da espécie
no planeta.
DR FEVEREIRO 2016 29