Page 29 - Revista da Armada
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VIGIA DA HISTÓRIA                           REVISTA DA ARMADA | 504

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PASSAGEIROS INDESEJÁVEIS

  Não é esta a primeira vez que aqui se       Ramalho Ortigão duvidava mesmo que
aborda a existência de animais indese-      as baratas, que classificava como perten-
jáveis a bordo; estou em crer, aliás, que   cente a uma nova espécie, a barata D.
todos quantos andam no mar já se depa-      João I, pudessem ser classificadas como
raram com a presença, a bordo, de várias    baratas pois, devido ao seu tamanho,
espécies dessas criaturas.                  mais deveriam ser classificadas como re-
                                            ses, sendo que as mais pequenas tinham
  Nalguns casos, tal presença apresenta     entre 4 a 5 cm de comprido e, na sua gran-
uma regularidade e constância tais que,     de maioria, até dispunham de asas.
não raro, alguns adquirem nomes pró-
prios, só lhes faltando terem cartão de       Afirmava ainda que, para além de um
detalhe para serem considerados efecti-     cheiro nauseabundo, as baratas apre-
vos tripulantes.                            sentavam o vigor dos tigres, a  vileza das
                                            moscas e a infâmia dos percevejos, acres-
  Não sendo uma situação que, usual-        centando que não seria de excluir a pos-
mente, constitua motivo de conversa ou      sibilidade, bem presente, dos tripulantes
tão-pouco de lamentação, a existência       serem por elas comidos.
destes passageiros não é do conhecimen-
to geral da população.                        O artigo lamentando a situação termina
                                            desta forma:
  Que eu saiba, uma das poucas vezes em
que o assunto teve divulgação generaliza-     “Se algum resto de tradição, de histó-
da ficou a dever-se ao escritor Ramalho     ria, de valor existe vivo em Portugal essa
Ortigão que, num dos volumes d’As Far-      pequena amostra do que foi um tesouro
pas, o abordou.                             desbaratado e extinto é a Marinha que o
                                            guarda.”
  Corria então o ano de 1872 e a corve-
ta D. João I, navio construído em Damão,                                  Com. E. Gomes
em 1828, com recurso a muitos materiais
resultantes do abate da corveta Infante     Notas
D. Manuel, ia seguir para uma viagem de     Nota: A viagem não correu como estava planeada pois o
curso de 15 guardas-marinhas, viagem        navio, comandado pelo Capitão-Tenente Augusto Victor
essa que tinha como destinos a Madeira,     de Andrade, não chegou a escalar a Madeira, arribou a
Cabo Verde, Angola, Cabo da Boa Espe-       Cabo Verde e veio a ficar em Luanda, onde, em 1874, foi
rança e Açores.                             abatido. No relato de episódios da viagem que Celesti-
                                            no Soares, um dos guardas-marinhas, deixou escrito nas
  Ramalho Ortigão, ou porque lhe disse-     Narrativas Navais, não consta que, contrariamente aos
ram ou porque assistiu in loco, começa      temores de Ramalho Ortigão, algum tripulante tivesse
por se manifestar espantado com as pés-     sido comido.
simas condições de alojamento dos guar-
das-marinhas a bordo, espanto esse que,     Fonte: As Farpas, Novembro de 1872
digo eu, só poderá ter quem nunca teve             Três Séculos no Mar, vol. 13
de embarcar em número muito superior à
capacidade de alojamento dos navios.        N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.

  O que mais o impressionou, no entanto,
fora a constatação de que o navio era “um
assombroso viveiro de baratas“ em nú-
mero de tal forma grande que, acreditava
aquele autor, se por fantasia desapareces-
sem todas as baratas do mundo, o núme-
ro delas a bordo da corveta era suficiente
para um novo repovoamento da espécie
no planeta.

DR FEVEREIRO 2016 29
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