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REVISTA DA ARMADA | 511

          NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                        56



          O SENTIDO DO DEVER... E O MEU



          AMIGO CORONEL MÉDICO







           […] O médico, esse, está mais preocupado com a necessidade de vacinar os 1600 homens que tem a bordo (no paquete Moçambi-
          que), e os outros três mil que vão chegar a Palma, para os proteger da febre tifoide. E só descansa quando consegue.

           In “Os Fantasmas do Rovuma”, a epopeia dos soldados portugueses em África na I Guerra Mundial, de Ricardo Marques.



            omeço por confessar aqui que tenho
         Cmantido um especial interesse na his-
          tória militar de Portugal. Particularmente
          pela  história  militar  recente,  paradoxal-
          mente a mais esquecida. Neste sentido, o
          livro acima é um ótimo exemplo de histó-
          ria militar recente e mal conhecida, pois
          relata em detalhe a campanha portugue-
          sa no Norte de Moçambique, durante a I
          Guerra Mundial.
           Trata-se de um livro especialmente in-
          teressante para um médico militar, desde
          logo porque a maioria das baixas se de-
          veram a doença, não ao combate. Neste
          sentido,  contém  relatos  detalhados  de
          médicos militares de então, cuja dedica-
          ção e conhecimento me enchem de orgu-                                                                  Montagem: Quick Gun / Imagens: Internet
          lho e novos conhecimentos… pois muitas
          lições de então são ainda hoje válidas…
           Naquele tempo, o sofrimento dos com-
          batentes  começava  logo  na  viagem  (no
          paquete Moçambique). O enjoo, a sobre-
          lotação, a deficiente conservação dos alimentos… Em África, a in-  Trabalhei mais intensamente com ele durante um breve pe-
          clemência do clima, com as suas doenças tropicais, também não   ríodo no Hospital das Forças Armadas. Estou certo que a Saúde
          ajudava, especialmente a estes europeus desconhecedores da re-  Militar ficou mais pobre sem o seu contributo, e muitos terão
          alidade local – muitos nunca tendo conhecido outro mundo, que   saudades dele, da sua visão honesta e límpida, livre…
          não o mundo da sua aldeia rural e das aldeias vizinhas do interior   Era o Coronel Médico Abílio Gomes e dele houve quem escre-
          português. Sinal disso, que me pareceu muito interessante, era   vesse este tributo que ouso repetir aqui:
          a recusa em fazer as vacinas, ou na toma do quinino descrita ao   “Perde-se um camarada, que sempre pautou a sua ação, como
          longo do livro. De toda a forma, a campanha foi marcada por mui-  médico do Exército, nos patamares mais elevados da dedicação,
          to sofrimento por parte dos que nela participaram, relatada por   do rigor e da competência profissional. Perde-se um amigo sempre
          médicos militares, que tudo faziam para aliviar aquele sofrimento.  disponível, que cultivava a lealdade, a amizade e a solidariedade de
           Lembrei-me destes médicos – ao serviço do Exército Português   um modo inexcedível  num padrão de significativa camaradagem”.
          – a propósito de um outro médico do Exército, também cardio-  Não posso estar mais de acordo. Vou também ter muitas sauda-
          logista, que sempre foi meu amigo e que partiu subitamente na   des dele. Da sua dedicação, da frescura do seu pensamento, da sua
          derradeira missão. Mesmo servindo no Exército, nunca deixou   fé, da sua força para acreditar. No meu dicionário pessoal, quando
          de ver a Saúde Militar no seu todo e via os médicos, de qualquer   se falar de médico militar, o seu nome virá por direito em primeiro
          ramo, como pessoas: com dias melhores e dias piores. Pessoas   lugar – ao nível daqueles outros clínicos de antanho que, no Rovu-
          com uma profissão diferente, muitas vezes mal compreendida,   ma, deram extraordinário exemplo como médicos e como militares.
          até pelos próprios… No final da sua vida, que foi subitamente in-  Vamos sentir falta da sua capacidade para sonhar….
          terrompida, tínhamos um projeto comum: a criação da valência
          de medicina militar na Ordem dos Médicos.                                                          Doc



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