Page 29 - Revista da Armada
P. 29
REVISTA DA ARMADA | 511
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 56
O SENTIDO DO DEVER... E O MEU
AMIGO CORONEL MÉDICO
[…] O médico, esse, está mais preocupado com a necessidade de vacinar os 1600 homens que tem a bordo (no paquete Moçambi-
que), e os outros três mil que vão chegar a Palma, para os proteger da febre tifoide. E só descansa quando consegue.
In “Os Fantasmas do Rovuma”, a epopeia dos soldados portugueses em África na I Guerra Mundial, de Ricardo Marques.
omeço por confessar aqui que tenho
Cmantido um especial interesse na his-
tória militar de Portugal. Particularmente
pela história militar recente, paradoxal-
mente a mais esquecida. Neste sentido, o
livro acima é um ótimo exemplo de histó-
ria militar recente e mal conhecida, pois
relata em detalhe a campanha portugue-
sa no Norte de Moçambique, durante a I
Guerra Mundial.
Trata-se de um livro especialmente in-
teressante para um médico militar, desde
logo porque a maioria das baixas se de-
veram a doença, não ao combate. Neste
sentido, contém relatos detalhados de
médicos militares de então, cuja dedica-
ção e conhecimento me enchem de orgu- Montagem: Quick Gun / Imagens: Internet
lho e novos conhecimentos… pois muitas
lições de então são ainda hoje válidas…
Naquele tempo, o sofrimento dos com-
batentes começava logo na viagem (no
paquete Moçambique). O enjoo, a sobre-
lotação, a deficiente conservação dos alimentos… Em África, a in- Trabalhei mais intensamente com ele durante um breve pe-
clemência do clima, com as suas doenças tropicais, também não ríodo no Hospital das Forças Armadas. Estou certo que a Saúde
ajudava, especialmente a estes europeus desconhecedores da re- Militar ficou mais pobre sem o seu contributo, e muitos terão
alidade local – muitos nunca tendo conhecido outro mundo, que saudades dele, da sua visão honesta e límpida, livre…
não o mundo da sua aldeia rural e das aldeias vizinhas do interior Era o Coronel Médico Abílio Gomes e dele houve quem escre-
português. Sinal disso, que me pareceu muito interessante, era vesse este tributo que ouso repetir aqui:
a recusa em fazer as vacinas, ou na toma do quinino descrita ao “Perde-se um camarada, que sempre pautou a sua ação, como
longo do livro. De toda a forma, a campanha foi marcada por mui- médico do Exército, nos patamares mais elevados da dedicação,
to sofrimento por parte dos que nela participaram, relatada por do rigor e da competência profissional. Perde-se um amigo sempre
médicos militares, que tudo faziam para aliviar aquele sofrimento. disponível, que cultivava a lealdade, a amizade e a solidariedade de
Lembrei-me destes médicos – ao serviço do Exército Português um modo inexcedível num padrão de significativa camaradagem”.
– a propósito de um outro médico do Exército, também cardio- Não posso estar mais de acordo. Vou também ter muitas sauda-
logista, que sempre foi meu amigo e que partiu subitamente na des dele. Da sua dedicação, da frescura do seu pensamento, da sua
derradeira missão. Mesmo servindo no Exército, nunca deixou fé, da sua força para acreditar. No meu dicionário pessoal, quando
de ver a Saúde Militar no seu todo e via os médicos, de qualquer se falar de médico militar, o seu nome virá por direito em primeiro
ramo, como pessoas: com dias melhores e dias piores. Pessoas lugar – ao nível daqueles outros clínicos de antanho que, no Rovu-
com uma profissão diferente, muitas vezes mal compreendida, ma, deram extraordinário exemplo como médicos e como militares.
até pelos próprios… No final da sua vida, que foi subitamente in- Vamos sentir falta da sua capacidade para sonhar….
terrompida, tínhamos um projeto comum: a criação da valência
de medicina militar na Ordem dos Médicos. Doc
SETEMBRO/OUTUBRO 2016 29