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ESTÓRIAS
MARIA PALMIRA
Vou contar-vos uma estória que aconteceu há muitos, muitos Foto do autor
anos, passada na cidade da Horta, na linda ilha do Faial.
“Era uma vez uma menina, muito pequenina, bebé ainda, que Talvez se tenha cometido uma injustiça irreparável. A vida tem
foi encontrada, abandonada, enrolada numa pequenina manta destas coisas.
já muito gasta, à porta de uma casa onde não morava ninguém.
Chorava. Passaram dois marinheiros de regresso a bordo que não Depois, outros afazeres, outras preocupações que o tempo,
ficaram indiferentes ao choro. Perguntaram a quem passava se inexorável, vai ajudando a esquecer, e não fora a casual mexida
conheciam os pais da criança e ninguém sabia. E a menina não num velho álbum de fotos onde revi a nossa afilhada, o que me
parava de chorar. Vai daí, pegaram na bebé e trouxeram-na para avivou a memória, não teria surgido esta estória. E não sei se faço
bordo. Logo trataram de a lavar, enquanto outros saltavam a ter- bem. Mas seja como for. Ela aqui está.
ra para comprar biberão, leite e roupinhas. O que fazer? Procu-
raram na cidade alguém para tomar conta da menina. Foi-lhes Aos marinheiros Aparício e ao outro, cujo nome esqueci, e
indicada uma senhora que, compreendendo a situação, se pron- mesmo sem poderes para tal, louvo o vosso gesto, o vosso hu-
tificou a cuidar dela. Foi-lhe garantida uma mesada para o efei- manismo de que resultou bom nome para a Marinha e assim
to. Para tal, todos a bordo contribuíram com donativos para que exemplo para os mais novos. O meu Muito Obrigado.
nada faltasse à menina, que passou a ser a nossa afilhada, afilha-
da da Marinha e a chamar-se MARIA PALMIRA.” Fim da estória. À nossa afilhada, Maria Palmira, octogenária, velhinha mas
sempre bonita, disto estou certo, desejo que esteja bem viva e de
Quando a conheci já ela tinha 12 anos. Foi em 1947, a bordo boa saúde e ainda toda a felicidade deste mundo, acompanhada
do NRP Vouga. Estava ela na muralha do porto da Horta acenan- de filhos, netos e bisnetos.
do e, logo que terminada a faina e colocada a prancha, entrou a
bordo, sendo recebida com abraços e beijos pelos marinheiros E não só do mar tenho saudades.
mais velhos que a esperavam. Para meu espanto e enorme satis-
fação estava a bordo um dos marinheiros desse tempo em que a Teodoro Ferreira
recolheram. E é por ele, Gervásio, 1º marinheiro artilheiro, que 1TEN SG REF
conheci a estória da Maria Palmira. “Gosto dela como se fosse
minha filha”, disse, comovido. Falou-me dos marinheiros que a N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
trouxeram para bordo, mas apenas me recordo de um nome:
Aparício.
Passou a ser hábito, em todo o navio que tocasse na Horta,
a recolha de fundos para a nossa afilhada e disso sou testemu-
nha. Foi assim no Lima, no Dão e no Tejo noutras comissões aos
Açores. E sempre que atracávamos à muralha na Horta era certa
a visita da Maria Palmira. Manifestações de amizade nunca lhe
faltaram, a que ela correspondia com sorrisos de quem está feliz.
E nós também.
Passados 9 anos (1956), larga da Base o petroleiro Sam Brás,
com destino a Nova Iorque, levando a bordo as guarnições para
as fragatas da U.S. Navy que estavam a ser “recicladas” para a
nossa marinha e que viriam a chamar-se Diogo Cão e Corte Real.
O petroleiro fez uma, julgo que inesperada, escala em Ponta Del-
gada (S. Miguel, Açores). Mal terminara a faina entram a bordo
uns agentes da PIDE que levam o Umberto, 2º sargento electricis-
ta. Tempos maus. Mas isto é outra estória. E refiro isto porque foi
em Ponta Delgada e em conversa com pessoal da Capitania que
recolhi a informação de que a nossa afilhada era já professora do
ensino primário. Fiquei muito feliz, pois tinha o seu futuro asse-
gurado. E daí até hoje nunca mais tive notícias da Maria Palmira.
No dia seguinte largámos rumo aos States. Soube, muito mais
tarde, que o Aparício não passou de cabo. Talvez não tivesse ha-
bilitações. Mas, tal como o seu camarada, tinha certamente de
sobra um grande coração, uma capacidade enorme para amar.
O seu humanismo não foi assim apreciado, não mereceu nota.
28 FEVEREIRO 2017