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REVISTA DA ARMADA | 515 58
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA
AO SENTIR DE POETAS ANÓNIMOS...
Em dias assim partiu a alma
Fugiu, para lugar incerto
Longe do medo, da inveja
Lá para junto de um sentir se reconhecem mutuamente… No fundo é esta e sempre será a
Solitário, mas justo minha grande ligação à Marinha… A minha ponte com o mar. São
Onde só alguns podem ler as regras não escritas, que todos os que já serviram sentem no
Sinais encriptados profundo do ser.
Nos silêncios do vento.
Exerço agora funções de gestão numa instituição diferente.
Lá estava ele, naquela grande sala de refeições do Hospital das Mas é como há muito tempo me avisaram, “podemos tirar o ma-
Forças Armadas (HFAR), onde agora almoço por força da posi- rinheiro da Marinha, mas nunca conseguiremos tirar a Marinha
ção que presentemente ocupo. Seguiu-me com o olhar e, de re- do coração do marinheiro”… Tudo na minha vida, o bom e o mau,
pente, senti-me menos só… Trata-se do ex-fuzileiro especial, em as vitórias e as derrotas, o medo e a coragem, o sorriso e a tris-
tempos retratado numa das minhas histórias (aquando da minha
anterior encarnação, neste mesmo HFAR). Antigo combatente na teza e, não menos importante, a esperan-
Guiné, homem orgulhoso da sua herança militar, deficiente das ça… me trouxeram a este promontório,
forças armadas, que agora demanda regularmente a fisioterapia, erguido no meio da cidade, que construí
por lesões sofridas em combate. junto a um Tejo mítico, reminiscente de
um porto de partida e chegada, tal qual a
Sempre tivemos forte empatia, nem sei bem explicar porquê. vida, que todos os marinheiros carregam
Talvez porque a minha farda lhe desperte um sentimento de nos- na alma… Só espero dar boa conta deste
talgia, pelo “sentir naval” de outros tempos, talvez apenas por- sentir naval, nas tempestades que se adi-
que quer ser simpático, ou, e eu quero mesmo acreditar nesta vinham….
verdade, seja mais um dos marinheiros poetas anónimos (como
aquele que produziu as estrofes acima), que sentem “os silêncios Gostaria de saber escrever melhor. Ser
do vento” de um modo muito próprio. eu próprio poeta. Dar voz alta à vida da-
queles que procuram o HFAR após uma
Não descansou enquanto não me cumprimentou e eu nem so- vida de serviço, em qualquer dos ramos
nhei em negar-lhe tal honra. Ele, os muitos doentes que conheço das forças armadas. Neste sentido, pa-
de outros tempos e de outras lides, o “cirurgião capilar”1 (que rece correto retomar estas histórias, de
também exercia aquele mister no defunto Hospital da Marinha), novo no HFAR, com as vozes de outros,
o Fuzileiro que pertence à segurança, todos, todos, me orgulham certamente mais merecedores. Aqueles
com as suas deferências e reforçam aquele sentir poético, de que não me conhecem bem, nem saberão
ser marinheiro, na alma. Ora eu, que certamente não sou po- destes silêncios que os marinheiros na alma guardam, vão achar
eta, devo a minha vida ao sentir destes poetas anónimos, que estranho (à falta de melhor palavra) estes escritos. Aceitarão,
contudo, que para muitos é tarde para mudar este sentir, feito
de sal e vento, de quem persegue a utopia de abraçar o mundo,
nas palavras...
Um grande abraço, com votos de um excelente 2017, a todos
os que me cumprimentaram nos últimos dias…
Doc
Notas
1 É sabido que na Marinha não há barbeiros, existem artilheiros e outras
especialidades que, como nos velhos tempos, se dedicam à cirurgia.
30 FEVEREIRO 2017