Page 6 - Revista da Armada
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A CIDADE DE
VILA DO CONDE
Amais antiga referência documental a
Vila do Conde – na altura designada trar sobre a rota comercial da Flandres. O era exportado pelo mar para Lisboa, para o
como Villa de Comite – é dada por uma senhorio eclesiástico, contudo, foi muito Porto ou para a Índia.
carta de venda desta terra ao mosteiro cobiçado e muitos pretendentes contesta-
de Guimarães, feita pela sua proprietária, ram a jurisdição de Santa Clara, alegando a Pela barra do rio Ave saíam navios ali
Dona Flâmula Pais (ou Chamoa), no ano irregularidade como a herdara. As monjas, construídos, saíam apetrechos marítimos,
de 953. O topónimo sugere que fosse o contudo, ganharam sempre os pleitos, e o cordame, velame, sal, pescado e muitas
senhorio de um conde (eventualmente um convento só perdeu os seus direitos quan- outras mercadorias da região exportadas
antepassado de Flâmula Pais), mas é muito do caiu na situação de incumprimento de por via marítima. Esta actividade económi-
difícil saber exactamente quem precedeu uma dívida, que foi imediatamente apro- ca poderosa despertou a cobiça e obrigou
Dona Flâmula. É certo que há vestígios veitado por D. João III. Com a intervenção a fazer obras de fortificação do porto e da
de povoamento desde o período romano, régia foi adquirido pelo infante D. Duarte, costa, mas também atraiu investimento
mas aquela região foi muito devassada e pelo preço da própria dívida e muito abai- que gerou mais riqueza. No século XVII,
insegura durante as guerras da reconquis- xo do seu valor real. Economicamente re- o convento de Santa Clara, mesmo sem
ta. Quando por ali passaram os navios da presentava algo como os rendimentos da os benefícios de outros tempos, conse-
cruzada que ajudou Afonso Henriques na alfândega, da barca de atravessamento do guiu mandar construir o grande aqueduto
conquista de Lisboa, em 1147, não deram rio, da pesca do rio e do mar, exploração monumental. E, no século XVIII, quando a
notícia de qualquer povoado junto à costa, do sal, tributo sobre bens imobiliários, co- actividade marítima decaía, foi levantado
nomeando apenas a existência do mostei- brança de portagens, etc. Um rendimento o novo edifício, com a imponência e a ma-
ro de Santo Tirso, que fica muito para o fabuloso que cresceu com condição de se- jestade que domina toda a foz do Ave.
interior. nhorio laico, sobretudo, no que ao mar e
ao comércio marítimo diziam respeito. O século XIX trouxe a Vila do Conde
Por perto de 1209, D. Sancho I fez doa- uma vida nova, dada por uma certa aris-
ção dessas terras a Maria Pais, a quem cha- São conhecidos os seus estaleiros, situa- tocracia que ali encontrava o descanso de
mavam a “Ribeirinha”, lavrando documen- dos nas duas margens, onde trabalhavam veraneio. Com ela veio, todavia, uma elite
to onde acrescenta “e a meus filhos que oficiais mecânicos (calafates e carpinteiros cultural de pintores, poetas e escritores
dela tenho”. Quatro gerações passadas e da ribeira), depositários de grande saber, que lhe emprestaram um novo ambiente
a jurisdição é herdada por Teresa Martins, que levou a que fossem frequentemente e modelaram a sua personalidade. Des-
que veio a casar com Afonso Sanches, o fi- requisitados pela coroa para as ribeiras de taco apenas o grande poeta José Régio,
lho bastardo e preferido de D. Dinis. O se- Lisboa e do Porto. Manuel Fernandes, mes- natural daquela vila, mas acrescento que
nhorio foi muito acrescentado pelo rei e o tre carpinteiro e autor do Livro de Traças ali viveu Antero de Quental, confessan-
casal decidiu ali implantar um convento de de Carpintaria (referência da arquitectura do que foram os momentos mais felizes
clarissas, que teve protecção do soberano. naval do princípio do século XVII), era de da sua vida adulta. Dos tempos passados
Alguns anos mais tarde, o convento de San- Vila do Conde. Desde o reinado de D. Fer- ficou-lhe a relação com o mar. O saber da
ta Clara viria a herdar a jurisdição de Vila nando que ali se produziam os chamados construção naval em madeira, que ganha
do Conde, de uma forma pouco clara, mas panos de tréu, conhecidos pela sua gran- recentemente nova expressão e dinâmica.
que permaneceu até ao século XVI. de qualidade e usados no fabrico de velas. Ficou-lhe um sabor a maresia que se sente
Nos séculos XVI e XVII, a produção teve o no ar, nas ruas, nas pessoas e, sobretudo,
A vila ganhou nessa altura um protago- seu auge, funcionando de uma forma or- na gastronomia.
nismo bastante significativo, dado pela ganizada, com investidores que adquiriam
actividade pesqueira e extracção de sal as matérias primas, distribuíam-nas pelos J. Semedo de Matos
mas, sobretudo, pelo facto de se encon- artesãos e recolhiam o produto final, que CFR FZ
N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
Foto SMOR L Almeida de Carvalho
6 JUNHO 2017