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REVISTA DA ARMADA | 525


         ESTÓRIAS                                                                                          37



         O MAR DOS AÇORES




             o longo dos meus 17 anos de embarque e no que toca a por-  tamente no rufo da casa da máquina, fi cando praƟ camente des-
         Aradinhas, recordo as duas que mais me vincaram e exacta-  feito. Entretanto, na tolda apinhada de bidons de gasóleo, óleo e
         mente ocorridas nos Açores: em S. Miguel, na noite de 3 para 4   gasolina, houve que reforçar o seu peamento, o qual foi feito com
         de Outubro de 1946, no Vouga (Comandante António Ferreira de   enorme difi culdade. Em consequência, o nosso imediato sofre
         Oliveira), e em Fevereiro de 1952 na Ilha Terceira, agora no navio   um acidente numa perna, sendo levado ao colo para o seu cama-
         balizador Almirante Schultz (Comandante Almeida Joglar e Ime-  rote, onde se manteve até ao Faial.
         diato Alcibíades da Cruz). Ambas causadas por ventos ciclónicos   Içado o ferro e com o Monte Brasil já pela alheta de EB, aproá-
         de SW, mas é desta úlƟ ma que trata esta estória.    mos à vaga já de enorme altura, aterradora, que não augurava
           O  Almirante Schultz foi o navio que, não obstante um aci-  nada de bom. E Ɵ ve medo. Por outro lado, confi ava no navio,
         dente que me custou dois meses no “cruzador amarelo” (tam-  como rebocador de alto-mar que era. Mesmo assim, afrontando
         bém conhecido por Hospital da Marinha), mais se adaptava ao   este mar tempestuoso não lhe era permiƟ do um desvio que, a
         meu pacifi smo. Não Ɵ nha peças de arƟ lharia e a sua função era   acontecer, lhe (nos) seria fatal. E, para isso, concorreram dois fac-
                                                                                      tores de relevo: um comandante
                                                                                      com um marinheiro de leme à
                                                                                      altura da situação e, sobretudo, a
                                                                                      ideia e o fazer do 1º Marinheiro
                                                                                      de manobra, Silva, que prevenƟ -
                                                                                      vamente colocara aparelhos de
                                                                                      força (massame) para subsƟ tui-
                                                                                      ção e garanƟ a de funcionamento
                                                                                      do leme caso houvesse rotura
                                                                                      nos gualdropes (correntes de
                                                                                      ferro, aliás já muito gastas), o que
                                                                                      veio a acontecer pouco depois de
                                                                                      deixarmos a ligeira acalmia ofere-
                                                                                      cida pela costa ocidental da ilha
                                                                                      de S. Jorge. Passou agora o navio
                                                                                      a ser governado à força de bra-
                                                                                      ços, situação que se manteve até
                                                                                      ao fi m desta prova de mar.
                                                                                       Mas antes, já passadas 36 horas
                                                                                      sem descanso e sem comer, des-
         nobre, a todos os  ơ tulos. Dava-se assistência técnica a faróis;   maiei. Fui acordado com duas bofetadas dadas pelo nosso Silva,
         benefi ciavam-se bóias luminosas de balizagem, poitas e as res-  provando assim a sua qualidade de homem providencial. Fiquei-
         pecƟ vas amarrações que enchiam a tolda. E também ơ nhamos   -lhe agradecido, apesar de tudo.
         uma cadela perdigueira, de olhos meigos, a “Isba”, e a sua prole.    Ao marinheiro Silva devemos, sem qualquer ponta de exagero,
         Eram oito amorosos cachorrinhos que às vezes interrompiam a   as nossas vidas. Depois e já com a ilha do Faial à vista, foi mais
         faina para se proceder, no emaranhado das amarras, à sua reco-  fácil suportar a ansiedade. A entrada no porto da Horta afi gurava-
         lha, contagem e justa prisão no casinhoto. Eles eram o “Moitão”,   -se diİ cil e perigosa mas, felizmente, correu bem. No momento
         o “Cadernal”, a “Patesca”… e por aí fora. Depois de Leixões, Setú-  da atracação os dois motores de 200 CV pararam… por falta de
         bal, a barra de Faro-Olhão e Vila Real de Santo António, rumámos   combusơ vel. Milagre! Foi a explicação. A verdade é que entrara
         aos Açores para subsƟ tuição das garrafas de aceƟ leno no farolim   água nos tanques. Se isto tem acontecido 10 minutos antes, não
         de um dos ilhéus das Formigas, a leste de S. Miguel, cerca de 35   havia estória para contar.
         milhas. Depois de outros trabalhos eis-nos chegados a Angra do   O nosso Imediato foi levado para o hospital.
         Heroísmo, na linda Ilha Terceira.                     Foram momentos horríveis, de sofrimento, medo, angúsƟ a, de
           Num entardecer lindíssimo, estamos (o Carlos, electricista, e   deitar um homem abaixo?
         eu) passeando na praça, onde tocava uma fi larmónica, seguindo,   Nada disso. E a prova está no marinheiro telegrafi sta que, logo
         casualmente, um grupo de raparigas, quando chega uma outra   após a atracação e quando toda a guarnição só pensava em des-
         moça que distribui beijinhos. Parados a assisƟ r, exclama o Carlos:   cansar, aparece fardado de azul e, com o ar mais natural deste
         – E nós, nada! – Então a moça, desinibida, vem junto de nós e   mundo, preparava-se para saltar em terra.
         beija-nos. Tivemos conversa até virmos para bordo. Eram 22h00.  Saudades do mar? Sim.
           O tempo estava calmo, sem sopro de vento, mar chão e tanto
         assim que o gasolina não foi içado contra o que era costume,                                Teodoro Ferreira
         sobretudo em portos de levante.                                                               1TEN SG REF
           Pelas 23h30, o Mestre Madaleno apita à faina. Levantara-se um
         sudoeste com tal fúria que o gasolina, ao ser içado, bateu violen-  N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co


                                                                                                   JANEIRO 2018  29
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