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REVISTA DA ARMADA | 525


         NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                         66



          A missa dos marinheiros…


































         (…)Celebremos os louvores dos homens ilustres, dos nossos   Ora, naquele dia, valeu bem a pena a viagem aos Jerónimos para
         antepassados através das gerações (…)                celebrar, com tantos marinheiros, os 700 anos da Marinha. As leituras
                                            Leitura do Livro de Ben-Sirá  foram feitas com emoção… e foram feitas por marinheiros, com um
                                                              senƟ r pleno e, mais importante, parƟ lhado por muitos dos homens
            stava para não ir, pois nesse dia encontrava-me mais uma vez   e mulheres presentes naquela sala… A música, essa foi verdadeira-
         Eemaranhado na construção de uma estrutura que teima em aba-  mente celesƟ al, tocada maioritariamente por muito jovens músicos
         nar, num balanço bombordo/esƟ bordo apostado em passar para   marinheiros, que trouxeram uma parte dos céus à Terra… a esta
         além do centro de gravidade desta tão grande e complexa embar-  Terra… Destacou-se o órgão, que emprestou uma profundidade e um
         cação. A Marinha parece estar na “outra margem do Tejo”, distante   peso emocional à celebração, que poucas vezes presenciei.
         deste lugar tão longínquo em que agora me encontro… Não do Tejo   Contudo, eu também não sabia que havia marinheiros capazes de
         real, mas do Tejo míƟ co, que cada marinheiro português carrega,   declamar e cantar salmos, ou composição sacra, com tanta, tanta
         secretamente, na alma. Enfi m, era a missa em honra dos 700 anos da   alma… tanta perfeição e tanta profundidade. Foi uma grande surpresa
         Marinha, deixámos tudo. Lá fomos – eu e outro médico – do Hospital   e não só para mim, pois nas faces presentes era visível o espanto…
         das Forças Armadas…                                  Emprestou-se uma solenidade à missa que, nesta ocasião, era cer-
           É verdade que costumo ir à missa, embora não com a persistência   tamente merecida. Foram, estou seguro, devidamente honrados os
         de um verdadeiro católico, sem pecado. Ao contrário, eu sou certa-  marinheiros de antanho, que não fenecerão nas nossas almas…
         mente um pecador recorrente e, frequentemente, de muito pouca   Mas as surpresas, naquele dia, não haviam acabado com o fi m da
         Fé. Tenho uma relação com Deus que foi forjada na vida, de certa   celebração, pois foi a primeira vez que vi um Ofi cial de grande impor-
         forma tardia e baseada nalgum sofrimento e perplexidade. Na minha   tância na Marinha do presente cumprimentar, uma por uma, todas
         própria perplexidade e naquele sofrimento que, no senƟ r  deste   as pessoas que nos Jerónimos estavam, e seriam algumas centenas…
         mister complexo que é ser médico, encontro nos olhos de outros…   Notei, a este propósito, que na minha frente, na fi la de saída, havia
         Raramente eu e Ele estamos completamente em paz, muitas, muitas   duas anƟ gas funcionárias de limpeza. Foram as duas cumprimentadas
         vezes, estamos às avessas, especialmente quando sinto que são per-  de uma forma personalizada, rara numa insƟ tuição tão grande e dife-
         seguidos os justos e, inexplicavelmente, poupados os ímpios…   renciada como a nossa…
           Contudo, acreditar em algo maior que nós próprios é um sen-   Saí a sorrir com a certeza do que acabara de viver… Honrámos,
         Ɵ mento que sempre me reconfortou, ou seja, em primeiro lugar   como diz a leitura acima, os homens ilustres da Marinha, mas foram
         enquadramos a vida numa dimensão maior que a nossa. Para o   também honrados todos os que, de uma forma ou de outra, estão
         bem e para o mal, aceitamos, se quiser o leitor atento e persistente,   a ela ligados… E aquele especial cumprimento, no fi nal, lembrou-me
         que, por maior importância que nos atribuamos, ou que outros nos     que “abençoados são os humildes, pois deles é o reino dos céus” …
         atribuam, tudo é temporário e efémero… Percebemos ainda que, lá   Enfi m, por tudo isto, tanto senƟ r, tanto rezar, tanta emoção, valeu
         bem no fundo, as nossas construções maiores provêm de pequenas   certamente a pena ir aos Jerónimos naquela manhã… O Deus dos
         coisas que talvez sejam pouco valorizadas por outros… Um sorriso,   homens do mar, de ontem e de sempre, também se viu segura-
         uma poesia, aquela saudade de alguém que realmente nos tocou e a   mente honrado…
         liberdade de perdoar quem nos ofendeu… O ato mais libertador que
         se apresenta ao ser humano.                                                                         Doc


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