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REVISTA DA ARMADA | 539
NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA 77
A DÍVIDA…
“Das razões que houve para não levar negro algum da ilha da Madeira
(…) No primeiro engenho não me escutaram mais de três negros, e um não tinha olho, que estava vazado (…) segui para outro enge-
nho (…) não haviam nenhuns que pareciam rijos e bem dispostos (…) e por mais cinco engenhos todas as vezes o mesmo se passou
sem poder trazer o negro que me convinha, pois eram todos já muito desarranjados, com quanto fossem ainda de mui pouca idade
(…) E querendo eu saber porque todos eram de pouca idade e tão desarranjados, tornou-me o capataz do derradeiro engenho que vi
nesta ilha, que não dura mais de sete anos cada negro em tais fossados de açúcar (…) e que tal coisa como era um negro com modos
de principal, e bem disposto, não podia haver naquelas partes, pois se tal houvesse por obra do demo, prontamente havia de levar
correção (…) havia de ser posto no tronco, até que tais modos deixasse de dar mostra”.
In a Lenda de Martim Regos, Pedro Canais, 2004
osto muito da ilha da Madeira. Gosto do ar que se respira, da
Gluminosidade. Gosto de me sentar num banco, junto à praia do
Machico, mesmo na frente de uma pequena fortaleza que lá está.
Fecho os olhos, sinto a brisa da tarde e imagino como seria a Madeira
de antanho. Imagino os primeiros colonizadores, que depois de uma
viagem de mar, teriam que sobreviver a partir de escarpas acentua-
das, sem acessos, em muitos casos por caminhos por onde nem pas-
savam as bestas da carga. Até há pouco tempo circular pelas estradas
da ilha era, em si mesmo, uma aventura. Tiveram que ser pessoas
rijas, ousadas, sobreviventes…
Ora ficou agora mais fácil perceber a história da Madeira, através
de um museu/parque de diversões temático (à maneira americana),
situado em Santana. Vale bem a visita, este parque histórico, onde Desenho de Paulo Guedes
se apresentam as dificuldades de colonização da Madeira e as mara-
vilhas que hoje esta ilha oferece. Contudo, nas apresentações e nos
textos, não se releva o contributo dos escravos, que tanto deram à
Madeira – conforme explícito no texto acima – e está historicamente cantos longínquos do Mundo, foi também capaz de tais atrocidades,
comprovado. Na verdade, pouco se fala do contributo dos escravos com a anuência, pelo menos implícita, da própria Igreja.
no nosso país em geral. Ora ocorreu-me que à maneira do que está a acontecer com
Pouca gente sabe, por exemplo, que em Lisboa chegou a haver mais outros atos reprováveis dos povos e do próprio Papa, talvez devesse
africanos do que portugueses nativos. Daí ficaram lugares, retidos haver uma retratação, um pedido de desculpas, para tanto horror,
na toponímia para provar a verdade, como “a Rua das Pretas”, ou o tanta atrocidade. Deveria haver um pagamento moral desta dívida,
emblemático “Poço dos Negros”. Poucos sabem, também, que nou- esquecida. Lembrei-me destes factos agora, a propósito de um artigo
tras zonas do país, como em Alcácer do Sal, por exemplo, a população científico em que, através de análises forenses de restos mortais de
de escravos era imensa, pois o Vale do Sado era um centro de produ- escravos, se descreve um quotidiano cheio de um sofrimento atroz,
ção de arroz. Onde estão todos estes escravos? Voltaram para África? marcado por fraturas não tratadas, deficits de oligoelementos e pro-
1
Morreram como sugere o texto acima? Não, na verdade estão em teicos de toda a ordem, assim como evidência de mortes precoces
todos nós. Após umas centenas de anos de miscenização, a cor exte- – de acordo, mais uma vez, com o relato histórico acima retratado.
rior da pele desaparece, mas a genética permanece. Na realidade, a Lembro-me destes factos sempre que me cruzo com um africano
genética dos portugueses – cada vez menos desconhecida – é distinta na rua – sim, destes que vieram para Portugal à procura de melhor
de qualquer outro povo europeu (… sim, mesmo da vizinha Espanha). vida. Recordo que, se calhar, ainda temos um familiar comum, de
Deste facto existem sinais, como por exemplo uma anemia ligeira, um passado distante. Procuro ver para lá da epiderme e, na minha
conhecida como anemia falciforme, um traço genético que confere pequena capacidade pessoal, procuro não cair no mesmo erro histó-
resistência à Malária, muito comum na África subsariana… relativa- rico (que alguns querem repetir…) do passado e incrementar a dívida
mente comum em Portugal. Não podemos fugir daquilo que fomos... moral dos meus antepassados. As Forças Armadas têm cada vez mais
Contudo, excetuando algumas iniciativas recentes, pouco se fala em portugueses de origem africana. Ainda bem…. Para mim são todos
Portugal da escravatura, como se fosse uma coisa que diz respeito, verdes…. Informa um grande amigo meu. Para mim também, verdes,
apenas, aos estados do Sul dos Estados Unidos, uma coisa, assim, vermelhos ou azuis, consoante o clube futebolístico, que todas as
distante… Os factos são bem diferentes, os portugueses tiveram um pessoas podem e devem assumir.
papel importantíssimo no desenvolvimento do comércio lucrativo da
escravatura, não só para territórios sob administração própria, dos Doc
quais se destaca o Brasil, como para venda a terceiros…
Admito que se tratará de um problema de má consciência coletiva.
Na verdade, como noutras aberrações da história – o Nazismo, por Nota
exemplo – foi precisa a colaboração de todo um povo. Fica difícil de 1 Oligoelementos são elementos químicos, fundamentais à saúde, geralmente obti-
explicar que um pequeno povo, que espalhou o catolicismo pelos dos através da alimentação.
ABRIL 2019 29