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REVISTA DA ARMADA | 540
É no sentido de uma avaliação sistémica de interesse his- Haverá excepções, claro está, designadamente as situações
tórico-jurídico, e no processo de apreciação e comparação em que haja de aplicar-se, por força do Direito internacional
de factos relevantes, que é importantíssimo atentarmos no privado – composto por normas de conflitos –, qualquer lei
pensamento, entre outros, de René David e Zweigert, ilustres estrangeira. De qualquer forma, o conhecimento do Direito de
comparativistas, e nas suas conceções dos agrupamentos das outros lugares (tal como o de outros tempos) é, não só, pra-
famílias – modelos de Direito –, essenciais que são à edifica- ticamente exigível pelas ditas razões de Direito internacional
ção de conclusões em sede de Direito comparado. privado – que tenderão a aumentar com o cosmopolitanismo
Como objeto de estudo, portanto, tanto a história como a e os fenómenos de trans-sociabilização e trans-laboralidade
sociologia política, como a própria ciência política, contêm crescentes –, mas também pela necessidade de harmonização
instrumentos analíticos fundamentais para circunstanciar a jurídica como objetivo comunitário, pelo sempre útil exemplo
ocasio legis e o método comparado, pois são pilares consis- alheio, e pelo insubstituível carácter formativo da matéria, o
tentes para o processo lógico-dedutivo que é nuclear à crí- qual apresenta a enorme virtualidade de fazer entender ao
tica jurídica. E esta dimensão é extraordinariamente impor- jurista a pluralidade de soluções possíveis para idênticos pro-
tante para evitar processos de utilitarismo imediatista que blemas, assim como as variações decorrentes das idiossincra-
caracterizam a cópia pela cópia, o que acentua os riscos da sias particulares de cada circunstância concreta.
clonagem jurídica; tais processos que, por vezes, são usa- A comparação de Direitos é um rasgar de horizontes, é um
dos na edificação legislativa revelam-nos que é nefasto uti- jogo de espelhos e de realidades, num contexto que o jurista
lizar soluções que, designadamente, outros países europeus positivista, situacionista, julgava acabar na última página do
assumiram pela simples referência que deles temos é o de seu código de ordenamento nacional. É mais uma revolução
terem graus de desenvolvimento estrutural alegadamente nas velhas concepções modernas do Direito, até porque, ao
mais sedimentados. Impõe-se que, antes de promovermos mostrar a variedade de normativos e de soluções, deitará
tais cópias, comparemos envolventes, as determinantes cul- simultaneamente por terra o carácter sacrossanto do dura lex
turais e, sobretudo, em especial em áreas como o direito do sed lex legalista. Assim sendo, tal teorização implodirá pelo
mar, a tipologia das comunidades marítimas em causa e bem simples cotejo de leis, acompanhando a destruição da rigidez
assim o enquadramento geográfico específico. Importa, por petrificada dos designados princípios racionalistas do Direito
isso, antes de uma avaliação específica a alguns modelos de Natural, os quais, alheios à natureza diversa dos homens e
direito do mar, aprofundar o que é o Direito Comparado. das sociedades em concreto, estariam escritos pelos ditames
À disciplina da comparação dos Direitos chama-se, usual- da razão. A este jusracionalismo, a comparação de Direitos
mente, Direito comparado, devido ao preconceito prepon- responderá demonstrando que princípios comuns são muito
derante da univocidade e daquilo que se poderia designar poucos, e que a generalidade assume um cariz mutável con-
como sendo o monopólio jurídico. Mesmo quando se reco- soante as variáveis locais e temporais.
nhece que não existe qualquer Direito comparado, que efe- Neste enquadramento, a comparação de Direitos incremen-
tivamente o que se compara são ordens jurídicas diversas tará não um sociologismo das puras práticas sociais – justas
– consequentemente Direitos diferentes –, e que comparar ou injustas –, mas, outrossim, um direito fundamental ligado
pressupõe, afinal, a alteridade e a divergência, acabará por se à realidade das coisas, e não apriorístico, tendo a ciência
ceder perante o uso inveterado daquele conceito. comparativística a particular aptidão para fazer dialogar o
Instalado, notoriamente, o pluralismo na teoria jurídica, é Direito com a história e a geografia, e aferir o que é essen-
lícito questionar se será adequado continuarmos a designar cialmente geopolítico. A comparação de Direitos é, portanto,
a tarefa jurídico-comparativista como de Direito comparado, uma disciplina enciclopédica, porque faz muito mais que
inclusive porque poderá vir a suceder que todo o Direito comparar leis ou ordenamentos especificamente jurídicos,
passe a ter essa dimensão comparatística tão salutar – con- comparando, na realidade, civilizações, culturas e matrizes
quanto arriscada, pelo natural fascínio induzido por umas legislativas de fundo, porque nessas se funda o mais razoável
ordens jurídicas sobre as outras –, mas de onde resultam, por critério de agrupamento de Direitos. E é especialmente rele-
vezes, desastrosos mecanismos de importação de que, signi- vante quando aferimos um ramo como o Direito do mar em
ficativas vezes, a doutrina justamente se orgulha. que a contextualização histórico-geográfica é determinante;
De facto, o problema é sobretudo doutrinal. As demais fon- é o que começaremos a estudar em artigos próximos.
tes do Direito, como a lei e a jurisprudência, poderão aludir
nos preâmbulos normativos, ou em considerandos de senten- Dr. Luís da Costa Diogo
ças, a soluções alheias, mas sempre hão-de acolher o Direito Diretor Jurídico da DGAM
nacional ou, de algum modo, recebido, como o comunitário. N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico
MAIO 2019 23