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REVISTA DA ARMADA | 540
ESTÓRIAS 49
UM ESCUDO INVISÍVEL
NRP Arcturus
o início do ano de 1968, pouco depois de completar o curso Guiné, como Fuzileiro. Durante a breve conversa, fiz-lhe natural-
Nda Escola Naval, fui nomeado para prestar serviço no NRP mente algumas perguntas sobre a Guiné e o ambiente de guerra
Lagoa, um Draga-Minas costeiro da Classe S. Roque, então que se vivia. Ele, muito rápido, contou-me que davam que fazer
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comandado pelo 1TEN Gusmão Burgete. O navio navegava bas- aos “turras” e à pergunta se também atacavam com frequên-
tante, pois colaborava intensamente nos chamados perfis. Havia cia as lanchas nos rios, obtive como resposta um grande sorriso
que arriar o batitermógrafo em certos pontos pré-determina- (meia gargalhada) e apenas uma palavra: – bastante!
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dos, bastante longe da costa, para depois guardar as lâminas de Chegou a hora de entrar. Entrei com muita calma, mas com
vidro (envernizadas), onde ficavam registadas as temperaturas às grande respeito e reverência. O Almirante Roboredo mandou-me
várias profundidades. sentar e disse-me que se fosse um jovem Guarda-Marinha como
Os meses foram passando, até que um dia, ao passar no “Pic- eu, o que mais desejaria era comandar uma lancha de fiscaliza-
-Nic” dos Restauradores – ponto de encontro de cadetes e ofi- ção na Guiné. Depois de uma breve conversa, perguntou-me se
ciais da Armada – um camarada bem informado me diz: – Vais podia contar comigo para esta missão, ao que respondi afirmati-
comandar uma lancha para a Guiné! vamente, claro.
As Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFP) na Guiné eram nor- – Então dê-me cá um abraço. – disse-me com voz forte e decidida.
malmente comandadas por oficiais da Reserva Naval, pelo que Recebida a LFP no Arsenal do Alfeite, o NRP Arcturus, onde
fiquei um pouco surpreendido e não sabia se seria mesmo de tinha sido acabada de construir, fizemos provas de mar durante
acreditar, pois havia sempre boatos que não se confirmavam. uns dias e num deles notei um irritante “tic, tic, tic” e verifiquei
Passado algum tempo, sou chamado ao Chefe do Estado-Maior que havia uma pequena santinha de metal (talvez dois centíme-
da Armada (CEMA), o Almirante Roboredo e Silva, conhecido por tros de comprimento) atada com um cordel à armação metálica
ser inteligente e sabedor, mas também muito rigoroso, por vezes que ficava acima da nossas cabeças a meio navio, destinada a
irascível e que infundia terror a alguns subordinados de posto fixar o toldo que se usava no ultramar para proteger do sol. A
mais distante do seu. Apesar disso, não fiquei intimidado, porque santinha oscilava bastante e batia no metal, pelo que fazia o tal
a juventude e o espírito de Cadete ainda presente, permitiam “tic, tic, tic” sempre que havia vento.
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uma certa serenidade. Perguntei ao mestre quem tinha posto lá a imagem da santi-
Já à entrada do Gabinete do CEMA, enquanto esperava para ser nha, que nem sequer tinha nome. Surpreendentemente diz-me
recebido, encontrei o 2TEN Braz Mimoso, camarada mais antigo, o mestre: – Não sei, Sr. Comandante, mas deixe lá ficar a santinha
sempre bem-disposto e que estava de férias de uma comissão na porque ela nos vai proteger durante a comissão!
28 MAIO 2019