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REVISTA DA ARMADA | 540
Claro que aceitei a sugestão, apesar de não gostar nada daquele mos depois as lanchas para comentar o sucedido e verificámos
pequeno ruído por ser muito repetido e frequente, especial- que nem nós, nem as LDM tínhamos sido atingidos por qualquer
mente à noite, quando o silêncio imperava. Fiquei um pouco projétil. As guarnições estavam bastante satisfeitas, por terem
intrigado sobre a proveniência da santinha e apesar de algumas reagido bem e não haver baixas, nem sequer avarias a registar.
tentativas para esclarecer o assunto, nunca soube quem foi o res- Munições é que gastámos muitas!
ponsável por aquela ação. O pessoal do Exército estava um pouco agitado, pois tinha
Pouco tempo depois já estávamos a caminho da Guiné, embar- assistido a tudo sem hipótese de reagir, apertados nos poços das
cados (lancha e guarnição) no Ambrizete, um navio mercante da LDM. Porém, a satisfação de não ter havido impacto nas lanchas
Sociedade Geral. Embarcou também a LFP Procion e respetiva era suficiente para animar.
guarnição. Lembro-me bem das datas porque fiz 23 anos a bordo As LDM seguiram para Bissau sem escolta, pois já não iriam pas-
do navio, no dia 30 de junho de 1968, mais ou menos a meio da sar por zonas perigosas e nós fomos retomar a patrulha do Rio
viagem. Até fui presenteado com um bolo de aniversário pelo Grande de Buba.
Comandante do Ambrizete. Pouco depois, diz-me o mestre, com a veemência de quem
Passado mais de um ano, a comissão corria muito bem na dá uma grande novidade: – Sr. Comandante, a santinha desa-
Guiné. Tínhamos cumprido missões quase sempre no rio Cacheu, pareceu!
com clareiras muito perigosas e largura de rio de 200/300 metros Fiquei completamente siderado. Fomos procurar minuciosa-
onde as lanchas eram muitas vezes atacadas. mente e nada. Nem santinha, nem o cordel (forte) que a prendia.
Por sorte, nunca tivemos qualquer ataque no Cacheu, apesar de O nosso raciocínio foi simples. Tínhamos perdido a nossa prote-
lá ficarmos 15 dias, seguidos de 15 dias de descanso, durante um ção e, como resultado, tínhamos sido atacados pela primeira vez
ano aproximadamente. Depois, passámos também a fiscalizar o na comissão, embora tivéssemos andado pelos sítios mais peri-
Rio Grande de Buba, muito menos perigoso, pois só um pequeno gosos. O escudo invisível tinha-se esfumado…
troço era estreito, junto à povoação de Buba, onde havia uma Jamais saberei o que aconteceu de facto. Partiu-se o cordel por
Companhia do Exército. desgaste e a santinha voou e caiu fora da borda? Terá sido algum
De vez em quando fazíamos missões de escolta a batelões projétil que passou muito perto sem darmos conta? Alguém da
com cargas diversas ou a lanchas de desembarque em variadas guarnição a tinha tirado por motivo desconhecido? Há quanto
tarefas. tempo faltava? Na noite anterior ainda nos lembrávamos de a
Um dia, mais exatamente a 13 de agosto de 1969, fomos fazer ter ouvido.
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escolta a duas LDM que iam embarcar uma companhia do Exér- Faltavam cerca de sete meses para o final da comissão. O que
cito, não a Buba, mas a um afluente bastante estreito que dava fazer? Claro que se arranjou outra santinha e tudo correu bem
acesso a Fulacunda. até ao fim. Apesar de outras situações difíceis e até um outro ata-
As duas LDM vinham com um oficial embarcado, o 2TEN Bonina que no Rio Grande de Buba com a Lancha fundeada (que obrigou
Moreno, que estava encarregado de dirigir as operações. Fomos a suspender de emergência), nunca houve qualquer impacto
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para montante sem novidade e embarcámos o pessoal nas duas na lancha e nem sequer um ferido ligeiro. Tivemos, sem dúvida,
LDM. Porém, quando regressávamos pelo afluente para o Rio muita sorte.
Grande de Buba, em pleno dia, fomos atacados por estibordo As incertezas da guerra só terminam quando nos afastamos
com morteiros, RPG (granadas antitanque) e, provavelmente definitivamente do teatro das operações. Por isso, a convicção
armamento ligeiro, mas não estou seguro disso. de que algo nos protege, sempre ajuda a encarar as missões com
A Arcturus ia a vante e as duas LDM em coluna a curta distância. maior confiança. Julgo que a segunda santinha já não tinha o
Começámos de imediato a responder ao fogo, mas vi o caso mal mesmo efeito transcendente da primeira, face à ocorrência rela-
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parado, porque notei as gerbes das morteiradas em ambos os tada, mas a guarnição não se atrevia a discutir o assunto. Uma
bordos, o que significava que estava enquadrado e ouvia as gra- coisa é certa: azar é que nunca tivemos…
nadas das RPG a assobiarem, portanto a passarem muito perto.
O nosso fogo intenso de Oerlinkon e das duas MG42 fazia muito Lopo Cajarabille
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barulho, pelo que não sei se o inimigo também estava a usar VALM
espingardas ou metralhadoras. Aumentada a velocidade para o
máximo e a passar a zona de tiro, faço uma guinada de 180 graus
para passar novamente frente ao inimigo e proteger as lanchas, Notas
mas sendo obrigado a passar por bombordo das LDM para que 1 Aparelho que regista as temperaturas em função da profundidade.
elas também pudessem continuar a fazer fogo. Suspendi o fogo 2 Abreviatura de terroristas que se usava na gíria da guerra.
por uns segundos enquanto passava pelas LDM e coloquei-me 3 Sargento de Manobra.
a ré delas, fazendo assim uma segunda passagem, utilizando o 4 Lanchas de Desembarque Médias.
mesmo armamento e também disparando alguns foguetes de 37 5 6 Levantamento da água proveniente do impacto de projéteis.
mm do lança-foguetes montado por cima da Oerlinkon. 7 Peça de artilharia de 20 milímetros.
Entretanto, o inimigo calou-se e nós afastámo-nos do local, dis- Metralhadora pesada fixada na estrutura a cada um dos bordos e outra na popa,
sendo esta capaz de fazer fogo para ambos os bordos.
pensando o apoio aéreo que nos foi oferecido logo que comu- 8 Içar o ferro do fundo para poder navegar normalmente
nicámos o contacto de fogo, pois não era necessário. Encostá-
MAIO 2019 29