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REVISTA DA ARMADA | 543
ESTÓRIAS 51
O MÉRITO E A CIRCUNSTÂNCIA
S. Vicente – Cabo Verde – Baía das Gatas, em 5 de Julho de 1961.
uando vejo um militar com o peito, de um bordo ao outro, cheio Estou saƟ sfeito comigo próprio, pois que me congratulo com
Qde medalhas, fi co pensando sobre o que o seu dono teria feito o que fi z, natural e espontaneamente, e assim, despretensio-
para as merecer e, como não tenho nenhuma, interrogo-me sobre samente, menciono as duas ocasiões em que o meu insƟ nto
o que não fi z ou o que devia ter feito. Deitaria isto para trás das se sobrepôs à razão. Comissão do Vouga em Ponta Delgada,
costas, não fora o facto de uma chamada de atenção por um CFR, 1946. O salvamento de um rapazito de 10 anos junto à rampa
na altura Director do Serviço de Abastecimentos, quando ali me dos aviões. Era eu um jovem de 21 anos. Ficou registado no
apresentei juntamente com outro 2TEN, também do Serviço Geral. Livro do Ofi cial de Dia; outro, quando embarcado no NRP Tejo
Após a apresentação e de nos ter olhado demorada e fi xamente, em 1961. Na aprazível Baía das Gatas em S. Vicente de Cabo
ora para um, ora para o outro, mandou o meu camarada reƟ rar-se e Verde, um rapaz cabo-verdiano faz um mergulho, fere-se numa
que eu fi casse. Então, recostando-se na sua cadeira, teceu conside- pedra, perde muito sangue, fi ca inacƟ vo e socorri-o já em
rações sobre presơ gio, honra, orgulho, brio, desconsiderações, faltas grande difi culdade. A pequena baía está protegida, em toda a
de respeito… e perguntou-me se não Ɵ nha condecorações. Percebi sua extensão, por uma barreira de grandes pedras amontoadas
então a razão dos olhares e das suas palavras, já que o meu cama- desordenadamente de forma a deixar passar a água, mas não
rada ostentava umas poucas de medalhas e eu, nada. Respondi que embarcações e… tubarões.
vencia as medalhas de Comportamento Exemplar de Cobre, a de Também é verdade que me concederam louvores: muitos
Prata e ainda duas de Socorros a Náufragos, mas que nunca mas colecƟ vos, que não dizem nada, e dois ou três individuais. Des-
deram e não é, nunca foi, meu propósito comprar medalhas para tes, e após 40 anos de serviço efecƟ vo na Armada, disƟ ngo um
as ostentar. Basta-me a consciência de ter feito o que Ɵ nha de fazer, que verdadeiramente me sensibilizou “…como Chefe dos Servi-
pois é essa a minha forma de estar na vida. ços Gerais ter sabido manter a sua intervenção inapercebida (o
Levantou-se, niƟ damente furioso, e rematou secamente com sublinhado é meu) na vida da Unidade, forma cabal de efi ciência
um: “Pode reƟ rar-se”. E reƟ rei-me, mas com a sensação de ter com que aqueles decorrem”. Alfeite, 14 de Julho de 1983.
falado de mais, aliás, também outra faceta minha. Afi nal, alguém reparou no meu modo de ser e estar. Muito obri-
É verdade que as condecorações são concedidas (dadas, per- gado ao Senhor Comandante Augusto Miranda Filipe da Silva.
miƟ das) a militares por actos de heroísmo em batalhas ou por Com saudades do mar…
bons serviços prestados. Não será o meu caso. Mas pasmo como
é que outros, às centenas, as usam e abusam delas. Teremos, Teodoro Ferreira
na Marinha que eu conheço, assim tantos bons servidores? Serei 1TEN SG REF
ceguinho? “As acções fi cam para quem as praƟ ca”, diz o ditado. N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
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