Page 30 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 543


         NOVAS HISTÓRIAS DA BOTICA                                                                        78



         O MAR…




         O jovem nem sabe explicar. Mas era como se o mar, com seus infi nitos, lhe desse um alívio de sair daquele mundo.”
                                                                                              Mia Couto, In Terra Sonâmbula


            ão sei escrever. Não sei escrever o que na alma me vai, com   se juntam os vários ramos, exige-se um esforço de uniformização
         No peso necessário, apesar de já ter escrito muito. Na minha   – muitas vezes a contracorrente das exigências do próprio ramo.
         carreira naval percorri vários mares, no mundo e na vida. Aqui   Aquela verdade toma proporções gigantescas quando se entre-
         confesso, tenho sempre um grande vazio por preencher, daqueles   cruza com as progressões técnicas das carreiras da saúde. Estas,
         que alguns chamam solidão, outros saudade, que são nomes que   por boas razões são das mais prolongadas e exigentes de todo o
         os poetas dão aos senƟ mentos… por falta de melhores expres-  conhecimento humano. A incerteza imposta por estes factos afas-
         sões. Na verdade, sabemos todos os que já navegaram, que no   tou muitos profi ssionais de uma carreira, que deveria ter sido sua.
         mar somos verdadeiramente nós, sem máscaras, ou disfarces…   Temos saudades deles, no vazio que deixaram na embarcação da
         Assim, condenado pela mesma sinceridade que o mar impõe,   Saúde Naval. Por outro lado, cada um dos que fi cou suporta um
         fi quei, vezes sem conta, a contemplar
         o vazio, imposto pelo azul que mar e
         céu impõem.
           Guardo muitos destes postais em
         lugares distantes, como outros o
         farão também. Ainda consigo ver o
         brilho vidrado no mar, de uma luz dis-
         Ɵ nta, num por do sol distante… Ou,
         noutro fi m de tarde, a sombra que o
         Pico, da Ilha do Pico, marcou no azul
         turquesa… que é o mar dos Açores,
         sempre tão perto e tão longe… E
         todos estes “infi nitos” que o mar con-
         tém, foram para mim alívio, para um
         mundo que – sabem os mais velhos –
         pode ser duro e diİ cil… Na verdade,
         é este senƟ r diferente, parƟ lhado por
         muitos, que marca as gentes do mar
         e as torna diferentes, diİ ceis de com-
         preender…
           Um exemplo claro deste princípio é
         o que se passa atualmente na Saúde
         Militar. Trata-se de um tema em que se chocam culturas – as dos   peso desusado, pela ausência dos que parƟ ram, neste navio que –
         vários ramos das forças armadas – e onde, como noutras situa-  agora, mais do que nunca – precisa de um esforço conơ nuo, para
         ções do passado, os entendimentos são diİ ceis. A verdade, pura   aƟ ngir águas safas.
         e simples, é a de que ninguém, independentemente da idade,   Alguns destes factos são tão simples e básicos, que estranhamos
         posto ou ramo, poderá, em boa honesƟ dade, dizer que melhorá-  não terem sido contemplados, por quem desenhou o projeto da
         mos… Trata-se de um Bojador de diİ cil (alguns afi rmam mesmo de   “nova” saúde militar. Foi como se de um passe de mágica se apa-
         impossível) transposição, num caminho maríƟ mo para uma Índia,   gasse tudo o que foi diferente, durante séculos… A magia, sabemos
         pacifi cadora, longe de acontecer…                    todos, teima em não surƟ r efeito. Ora, os marinheiros de antanho
           Pede-se ao pessoal de saúde que aceite pelo menos dois mestres,   descreveram vários monstros marinhos, míƟ cos e sempre medo-
         pelo menos duas regras, por vezes mesmo, até outras regras, des-  nhos. Lulas gigantes, capazes de afundar navios, serpentes marinhas
         conhecidas de todos e profundamente alheias ao senƟ r naval. Ora   de uma agressividade comprovada e até um “Adamastor”, gra-
         cada grupo profi ssional precisa de uma narraƟ va, de uma linguagem   vado n’Os Lusíadas. Na Saúde, cada conversa recria, alguns séculos
         comum, com referências balizadoras – a esta dinâmica se chama   depois, monstros semelhantes, sem esperança na passagem breve
         integração. Essas referências tendem, em qualquer organização, a   para uma “Boa Esperança”, capaz de gerar mar bonançoso.
         responder a três perguntas fundamentais: quem sou eu na organiza-  Resta-nos, como sempre, o mar, pleno de infi nitos, para lá deste
         ção? O que se espera de mim? Para onde vou?… Ora, para qualquer   estranho e perigoso mundo, que, infelizmente, não é míƟ co. É nele
         profi ssional de saúde, na nossa Marinha, essas três perguntas nunca   que retempero o espírito, é por ele – e por todos os marinheiros
         foram de tão complexa resposta e eivadas de tanta incerteza…  – que ouso ter a coragem, para, ainda desta vez,  escrever estas
           Sabe-se que as regras, e obrigações, entre os ramos são abso-  palavras…
         lutamente disƟ ntas, com exigências e obrigações impostas pela
         cultura própria do ramo. Apesar daquelas diferenças, sempre que                                     Doc


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