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REVISTA DA ARMADA | 548
VIGIA DA HISTÓRIA 115
BAPTISMO DOS
ESCRAVOS
omo já aqui anteriormente foi referido, uma das principais preocupa-
Cções da Coroa, no que ao tráfi co de escravos diz respeito, era o da sua
catequização e bapƟ smo, isto para além da óbvia cobrança de direitos.
O jesuíta Alonso de Sandoval, em carta escrita em 20 de Abril de 1616,
referia ter feito tudo o que podia para que os “morenos“ (subƟ l e fre-
quente forma de dizer escravos) fossem bem catequizados, o que não
conseguiu concreƟ zar, quesƟ onando-se se porventura alguns deles não
haviam sido bapƟ zados mais de uma vez. Afi gura-se de interesse divulgar
o que este jesuíta deixou escrito fruto da recolha por ele efectuada, no
decurso do séc. XVII, de variadíssimos testemunhos de padres, capitães
de navios negreiros e mercadores de escravos, testemunhos esses que
apontam para a existência de uma curiosa práƟ ca desƟ nada unicamente
ao cumprimento das instruções da Coroa.
Refere ele que na véspera da parƟ da dos navios negreiros, de Luanda,
os padres que os iriam bapƟ zar faziam-nos sair dos armazéns onde esta-
vam presos para não fugirem e juntavam-nos, acorrentados, nas igrejas
ou nas praças, e após, nalguns casos, referirem os seus nomes, asper-
giam-nos, com água com sal, fi ndo o que lhes faziam uma práƟ ca, através
de intérprete.
Pela sua curiosidade transcrevem-se partes de algumas das práƟ cas
referidas por aquele jesuíta em carta datada de 21 de Dezembro de 1622:
“Agora já sois fi lhos de Deus e vão seguir para terras espanholas onde
aprendereis as coisas da Santa Fé, não deverão recordar-se das vossas
terras, nem comer ratos, cães e cavalos. Deveis seguir para os vossos des-
Ɵ nos de boa vontade“.
Numa outra referia-se que:
“A lei em que tendes vivido é ruim e nela seriam condenados, mas com
o bapƟ smo salvar-se-ão e irão para o Céu se morrerem“.
Os testemunhos referem ainda que, para além de não haver qualquer
catequização, nem sequer lhes ser ensinado quem era Deus, as cerimó-
nias eram feitas apressadamente, por causa do calor, nunca lhes sendo
explicado sequer o signifi cado das mesmas, as qu ais a maioria dos escra-
vos acreditava tratar-se de actos de feiƟ çaria, enquanto outros nem se
apercebiam do que lhes era dito, quer por não o ouvirem, quer ainda por
não entenderem o dialecto que era uƟ lizado pelo intérprete.
Tal práƟ ca não era exclusiva de Luanda, onde um dos capitães, na cir-
cunstância Gaspar de Carvalho, refere que nas 20 vezes que lá fora vira
sempre o mesmo procedimento, havendo testemunhos de que o mesmo
se processava igualmente em Cabo Verde, onde até, por vezes, era um
soldado que aspergia a água com sal sobre os negros.
É igualmente referido que, quando o número de escravos era reduzido,
estes seguiam sem sequer serem submeƟ dos a este ou outro qualquer
procedimento.
Os testemunhos, quer pelo seu número, quer pelo período de tempo
abrangido, levam a crer não se tratar de uma práƟ ca episódica.
Cmdt. E. Gomes
Fonte: Tractadus de Instauranda Aethiopum Salute por Alonso de Sandoval
N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
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