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ESTÓRIAS 56
O CAFÉ
Em agosto de 1969 o 1TEN M José Manuel Velho da Silva Dias estava por torrar. Um milagre diİ cil de explicar! Comprei todos
foi chamado ao Estado-Maior da Armada para lhe ser atribuída os sacos e levei-os para o nosso aquartelamento. Chamei o
a missão de formar o Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 3 cozinheiro, um balanta com grande estampa İ sica que, para
(DFE 3), com desƟ no à Guiné. Convidou ofi ciais da sua confi ança cozinhar bem, Ɵ nha de ter um garrafão de cinco litros de vinho
para o acompanharem: o GMAR M Joaquim Teles Ribeiro, como ao lado e estar bem bebido, e dei-lhe ordens para ele torrar
Imediato; o José Pedro Mesquita e Carmo e o autor destas letras o café, com todo o cuidado, num pequeno forno que ơ nha-
(ambos do 14.º CFORN) como 3.º e 4.º Ofi cial, respeƟ vamente. mos para fazer pão. Depois de arruinar as primeiras fornadas,
A pressa em fazer parƟ r o DFE 3 era tanta que não foi publi- acertou no ponto da torra e passámos a ter café fantásƟ co, tor-
cada em tempo a nossa promoção a STEN RN. Ao desembarcar- rado e moído no momento. Um luxo, naquelas circunstâncias
mos da fragata NRP Nuno Tristão em Bissau, a 12 de outubro, e naquele ambiente!... Assim, no fi m do jantar, em Cacheu,
o Comandante da Defesa MaríƟ ma da Guiné, COM M Luciano quando não estávamos no mato em operações, era costume o
Bastos, ordenou que nos fossem entregues as divisas de STEN, pessoal do Exército e dos Comandos vir aos Fuzileiros tomar
proibindo-nos de andar com as de cadete. café, beber whisky e tagarelar um pouco.
EsƟ vemos cerca de um mês em
Bissau, à espera que chegasse todo DR
o equipamento militar do Desta-
camento. Finalmente lá embarcá-
mos na LDG NRP Montante, rumo
a Ganturé, a maior base fl uvial da
Marinha na margem direita do rio
Cacheu, onde chegámos a 15 de
novembro e fomos recebidos pelo
pessoal dos DFE 8 e DFE 13 e pelo
Comandante Alpoim Calvão.
Pode-se dizer que Ganturé foi um
espaço e um tempo que nos integrou
no clima da guerra, tal era o ritmo
de operacionalidade imposto; um
clima pesado que nos irmanou nas
difi culdades do dia a dia, nos perigos
que daí advinham, nas carências,
no calor, nos terríveis mosquitos,
na alimentação defi ciente, etc. Foi
naquele ambiente fortemente mili-
tarizado que conhecemos a míƟ ca
península de Sambuiá, palco de
grandes confrontos entre os Fuzilei-
ros e os guerrilheiros do PAIGC.
Algo que nos penalizava bastante era não termos café, um No fi nal da comissão, quando regressámos a Bissau, fomos
bom café que nos ajudasse a enfrentar todas as contrariedades rendidos pelo DFE 4 comandado pelo 1º Tenente Ferreira Júnior,
daquela situação. Havia um café solúvel que era diİ cil de tragar, no qual estava o Ricardo MaƟ as (também do 14.º CFORN),
mas era o que ơ nhamos… e desmoralizava bastante não haver como 3º Ofi cial. Organizámos uma pequena e simbólica ceri-
um café digno de se beber. mónia de passagem de testemunho da máquina de café e res-
Quando vim de férias pela primeira vez, uma das minhas preo- peƟ vo moinho. Nessa cerimónia foi exaltado o alto valor militar
cupações foi regressar à Guiné com uma máquina de boa capa- daquele equipamento, capaz de operar milagres na moƟ vação
cidade e café. Assim, para além da máquina – uma cafeteira ita- do pessoal, pelo que o DFE 4 passaria a ser o fi el depositário e
liana de alumínio, vulgar, que dava para fazer 10 ou 12 chávenas responsável pelo seu bom uso.
de cada vez, o esquema ideal para quem, como nós, dispunha
de uma boca de gás – e de um pequeno moinho, consegui levar Miguel Duarte Ferreira Carmo Soares
5 kg de café na bagagem. Estávamos em Cacheu e, quando se Ofi cial do 14º CFORN
soube que o DFE 3 Ɵ nha uma máquina de café, foi um corridi-
nho dos ofi ciais e furriéis do Exército, com os quais nos dáva-
mos bem, de modo que o café que levara do ConƟ nente durou
pouco tempo. Nota
Um dia, casualmente, descobri numa loja de libaneses, em Extraído do livro “Crónicas Intemporais – da Guerra e da Fraternidade”
Cacheu, várias arrobas de café de São Tomé, ensacado, que
28 FEVEREIRO 2020