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REVISTA DA ARMADA | 548


               ESTÓRIAS                                                                                        56



              O CAFÉ




               Em agosto de 1969 o 1TEN M José Manuel Velho da Silva Dias   estava por torrar. Um milagre diİ cil de explicar! Comprei todos
              foi chamado ao Estado-Maior da Armada para lhe ser atribuída   os sacos e levei-os para o nosso aquartelamento. Chamei o
              a missão de formar o Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 3   cozinheiro, um balanta com grande estampa  İ sica que, para
              (DFE 3), com desƟ no à Guiné. Convidou ofi ciais da sua confi ança   cozinhar bem, Ɵ nha de ter um garrafão de cinco litros de vinho
              para o acompanharem: o GMAR M Joaquim Teles Ribeiro, como   ao lado e estar bem bebido, e dei-lhe ordens para ele torrar
              Imediato; o José Pedro Mesquita e Carmo e o autor destas letras   o café, com todo o cuidado, num pequeno forno que  ơ nha-
              (ambos do 14.º CFORN) como 3.º e 4.º Ofi cial, respeƟ vamente.  mos para fazer pão. Depois de arruinar as primeiras fornadas,
               A pressa em fazer parƟ r o DFE 3 era tanta que não foi publi-  acertou no ponto da torra e passámos a ter café fantásƟ co, tor-
              cada em tempo a nossa promoção a STEN RN. Ao desembarcar-  rado e moído no momento. Um luxo, naquelas circunstâncias
              mos da fragata NRP Nuno Tristão em Bissau, a 12 de outubro,   e naquele ambiente!... Assim, no  fi m do jantar, em Cacheu,
              o Comandante da Defesa MaríƟ ma da Guiné, COM M Luciano   quando não estávamos no mato em operações, era costume o
              Bastos, ordenou que nos fossem entregues as divisas de STEN,   pessoal do Exército e dos Comandos vir aos Fuzileiros tomar
              proibindo-nos de andar com as de cadete.            café, beber whisky e tagarelar um pouco.
               EsƟ vemos cerca de um mês em
              Bissau, à espera que chegasse todo                                                                   DR
              o equipamento militar do Desta-
              camento. Finalmente lá embarcá-
              mos na LDG NRP  Montante, rumo
              a Ganturé, a maior base fl uvial da
              Marinha na margem direita do rio
              Cacheu, onde chegámos a 15 de
              novembro e fomos recebidos pelo
              pessoal dos DFE 8 e DFE 13 e pelo
              Comandante Alpoim Calvão.
               Pode-se dizer que Ganturé foi um
              espaço e um tempo que nos integrou
              no clima da guerra, tal era o ritmo
              de operacionalidade imposto; um
              clima pesado que nos irmanou nas
              difi culdades do dia a dia, nos perigos
              que daí advinham, nas carências,
              no calor, nos terríveis mosquitos,
              na alimentação defi ciente, etc. Foi
              naquele ambiente fortemente mili-
              tarizado que conhecemos a míƟ ca
              península de Sambuiá, palco de
              grandes confrontos entre os Fuzilei-
              ros e os guerrilheiros do PAIGC.
               Algo que nos penalizava bastante era não termos café, um   No  fi nal da comissão, quando regressámos a Bissau, fomos
              bom café que nos ajudasse a enfrentar todas as contrariedades   rendidos pelo DFE 4 comandado pelo 1º Tenente Ferreira Júnior,
              daquela situação. Havia um café solúvel que era diİ cil de tragar,   no qual estava o Ricardo MaƟ as (também do 14.º CFORN),
              mas era o que ơ nhamos… e desmoralizava bastante não haver   como 3º Ofi cial. Organizámos uma pequena e simbólica ceri-
              um café digno de se beber.                          mónia de passagem de testemunho da máquina de café e res-
               Quando vim de férias pela primeira vez, uma das minhas preo-  peƟ vo moinho. Nessa cerimónia foi exaltado o alto valor militar
              cupações foi regressar à Guiné com uma máquina de boa capa-  daquele equipamento, capaz de operar milagres na moƟ vação
              cidade e café. Assim, para além da máquina – uma cafeteira ita-  do pessoal, pelo que o DFE 4 passaria a ser o fi el depositário e
              liana de alumínio, vulgar, que dava para fazer 10 ou 12 chávenas   responsável pelo seu bom uso.
              de cada vez, o esquema ideal para quem, como nós, dispunha
              de uma boca de gás –  e de um pequeno moinho, consegui levar                 Miguel Duarte Ferreira Carmo Soares
              5 kg de café na bagagem. Estávamos em Cacheu e, quando se                               Ofi cial do 14º CFORN
              soube que o DFE 3 Ɵ nha uma máquina de café, foi um corridi-
              nho dos ofi ciais e furriéis do Exército, com os quais nos dáva-
              mos bem, de modo que o café que levara do ConƟ nente durou
              pouco tempo.                                          Nota
               Um dia, casualmente, descobri numa loja de libaneses, em   Extraído do livro “Crónicas Intemporais – da Guerra e da Fraternidade”
              Cacheu, várias arrobas de café de São Tomé, ensacado, que


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