Page 25 - Revista da Armada
P. 25

REVISTA DA ARMADA | 557


               29      MARE CLAUSUM E MARE LIBERUM



                       A POSIÇÃO DE SERAFIM DE FREITAS NO CONTEXTO

                       DA ENVOLVENTE MARÍTIMA E O DEBATE JURÍDICO

                       PARTE II




                          discussão teórica e fi losófi ca predominante no Séc. XVII,   Era precisamente neste fundamento que Grocius baseava o
                      A  que igualmente se tornou políƟ co-estratégica –, era o   pressuposto do seu pensamento; uma vez que os monarcas
                       justo equilíbrio entre a noção jurídica de efecƟ vo poder e o   apenas têm um direito de jurisdição e de protecção no mar,
                       conceito legal de occupaƟ o, cuja sustentação advinha dos   e não podem proibir ninguém de navegar. Era precisamente
                       fundamentos do direito romano. Portanto, a discussão se a   com esta abordagem que o autor criƟ cava Welwood , afi r-
                                                                                                               4
                       jurisdicƟ o do Estado se sustentava, e advinha, de um direito   mando  que a discussão entre imperium e jurisdicƟ o não era
                                                                            5
                       de propriedade sobre um território maríƟ mo, ou se dela era   relevante para as questões do dominium e do jus pescandi.
                       independente, como enunciava Fulton. Há aqui, também,   No seu pressuposto, o que Grocius pretendeu expressar era
                       uma outra matéria jurídica de aferição fundamental: é a   que fora das fronteiras territoriais de um Estado, nenhum
               DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
                       questão da extraterritorialidade dos poderes exercidos fora   monarca pode exercer o seu imperium a não ser sobre os
                       de águas territoriais, porque, por conceito e natureza, nunca   próprios navios, inclusive porque defendia que as receitas
                       poderão aqueles ser plenos. Sempre exisƟ u no direito inter-  obƟ das com as acƟ vidades de pesca resultam de imposi-
                       nacional uma questão magna que é o encontrar-se o justo   ções pessoais e não de índole territorial, sendo limitadas aos
                       equilíbrio do seu potencial exercício fora do território de um   desƟ natários e matérias em causa. Defendia, ainda, que o
                       determinado Estado .                            exercício do imperium sobre navios estrangeiros se limitava
                                      1
                        Os alvores do Séc. XVIII trouxeram um novo entendimento   às águas onde o monarca  Ɵ vesse um efecƟ vo  dominium;
                       e discussão que permaneceriam até à célebre preparação das   todos os autores que lhe são posteriores , como Gothofre-
                                                                                                      6
                       Convenções de Genebra de 1958 ; assim, o efecƟ vo  poder   dus e Portanus  e o próprio Loccenius (1650), reforçariam
                                                2
                                                                                  7
                       de regular – o imperium – e a posse do mar – o dominium –   esta premissa.
                       apenas poderão coexisƟ r de uma forma que seja conjugada,
                       porquanto a regulação apenas pode subsisƟ r quando haja   SERAFIM DE FREITAS E A DISPUTA COM A
                       posse ou, usando uma expressão de Setecentos, quando exis-
                       tam os direitos inerentes a um proprietário. Assim, os navios   DOUTRINA DE GROCIUS
                       estrangeiros estariam fora da capacidade de intervenção de   Toda aquele envolvente foi determinante para a discus-
                       um Estado costeiro quando navegassem fora do território   são jurídica das questões de soberania e dominium, tendo
                       daquele. Neste contexto, poder-se-ia aduzir que o mar ou   sido basilar na diferente percepção dos ilustres juristas que
                       seria totalmente liberum ou totalmente clausum, e a referida   defenderam posições antagónicas.
                       posição intermédia em que o Estado apenas pudesse ter uma   Assim, a reacção dos juristas portugueses, inicialmente
                       forma de  jurisdição não seria ainda, àquela luz, e naquela   em 1619 com Bento Gil, mas também António Gama, Jorge
                       altura, concebível. No século seguinte (Séc. XIX), contudo,   Cabedo de Vasconcelos e Fernando Rebelo, foi veemente no
                       quando o exercício dos poderes e a sua confi guração permi-  senƟ do da defesa dos interesses soberanos de Portugal, e na
                       Ɵ a já conceber e assumir uma situação de  mera jurisdição   apropriação e domínio sobre os mares, invocando a correcta
                       dos Estados costeiros, ter-se-á usado – até de forma algo for-  interpretação a dar aos textos romanos, e a deturpação que
                       çada, diga-se – como pressuposto fundador o próprio esboço   Grocius deles terá feito. Bento Gil terá mesmo apresentado
                       de Grocius em que este teria enunciado que o Coastal State   um vasto conjunto argumentaƟ vo ao Rei, mas o interesse
                       poderia exercer o seu imperium sobre navios estrangeiros no   geopolíƟ co sobrepôs-se, porque o monarca estava numa
                       mar, sem necessariamente exisƟ r um dominium desse Estado,   fase de progressivo apaziguamento de relações políƟ co-di-
                       alegando-se que essa premissa que o jurista holandês Ɵ nha   plomáƟ cas com a Holanda.
                       defi nido pressupunha uma capacidade de jurisdição ou, prefe-  Uma argumentação mais consistente e com fundamento
                       rindo-se o termo, de polícia do mar.            histórico viria, contudo, com Serafi m de Freitas, um ilustre
                        Convenhamos que é uma leitura muito forçada do pensa-  jurista, doutor pela Universidade de Coimbra, e que se viria
                       mento e da teoria de Grocius.                   a destacar em Valladolid  como advogado, onde conseguiu
                                                                                          8
                        Aliás, no seu Mare Liberum, Grocius escreveu que “(…) for   a cátedra de Cânones na Universidade (1607), tendo, no
                       nowdays dominium means a parƟ cular kind of ownership, so   ano seguinte, ingressado no Convento de Nossa Senhora da
                       that in fact it absolutely excludes a similar possession by ano-  Mercê de Valladolid. De entre um muito signifi caƟ vo elenco
                       ther” . Estas premissas de Grocius levaram a considerar que   de obras, em especial argumentação jurídica e pareceres
                          3
                       as suas referências eram para o mar visto como um todo e   canónicos e morais, destaca-se, pela eminência e relevância
                       não se referia, especifi camente, às águas costeiras, as quais   histórica, o De Justo Imperio Lusitanorum AsiaƟ co (Do Justo
                       o ilustre jurista excluía, claramente, do seu enunciado, e de   Império AsiáƟ co dos Portugueses), publicado precisamente
                       toda a discussão; como ele próprio expressava “(…) the issue   em Valladolid em 1625, obra central na polémica sobre a
                       does not concern a gulf or a strait in this ocean, non even all   liberdade dos mares a qual, como vimos estudando, envol-
                       the expanse of sea which is visible from the shore”.  veu os mais brilhantes juristas europeus do Séc. XVII.


                                                                                                      DEZEMBRO 2020  25
   20   21   22   23   24   25   26   27   28   29   30