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REVISTA DA ARMADA | 557
BREVES REFLEXÕES SOBRE
O PODER NAVAL NO
PÓS-PANDEMIA
o seu livro de 2008, inƟ tulado O Cisne não abordarei neste texto as ameaças híbri- nos espaços maríƟ mos, originando uma
NNegro, Nassim Nicholas Taleb designou das e, concretamente, a exploração mali- situação de grande tensão.
dessa forma os eventos totalmente inespe- ciosa da dimensão informacional, através de No ÁrƟ co, as contendas relaƟ vas ao
rados, de grande impacto, capazes de origi- desinformação, contrainformação ou cibera- processo de delimitação das plataformas
nar uma desconƟ nuidade ou uma alteração taques, pois essa matéria já foi abordada no conƟ nentais têm contribuído para uma
abrupta do ambiente global. Nesse entendi- arƟ go de setembro/outubro. tensão latente, que tem, na sua base, uma
mento, a COVID-19 não deve ser vista como disputa pelos recursos naturais, do leito e
um cisne negro, pois muita gente vinha aler- 1) Aumento da confrontação estratégica do subsolo marinhos.
tando para a crescente probabilidade de a A pandemia veio reforçar a tendência No Mar do Sul da China, a China vem
Humanidade ser aƟ ngida por uma pande- de incremento da confrontação e da reclamando a Ɵ tularidade de diversos
mia deste Ɵ po. compeƟ ção internacional, tendo sido rochedos ou ilhas, com implicações nos
Com efeito, esta é a quarta pandemia evidente a falta de solidariedade, mesmo espaços maríƟ mos adjacentes, reclama-
desde a famigerada “gripe espanhola”, de entre aliados e parceiros, durante a pri- ção essa que é contestada pelos países da
1918-1919. Contudo, se as pandemias sem- meira vaga do surto, quando esteve em região e pelos EUA.
pre foram grandes modeladoras da Huma- causa a compeƟ ção por equipamento A essas situações, importa acrescentar
nidade, existem duas razões que levam a sanitário. E embora a COVID-19 não o aumento signifi caƟ vo da aƟ vidade sub-
crer que esta tenha um impacto parƟ cular- esteja diretamente ligada com os confl i- marina russa no Oceano AtlânƟ co, cujos
mente elevado. tos e as crises pré-existentes, exacerbou desafi os têm sido designados, por alguns
Em primeiro lugar, por se tratar da pri- uma maior crispação nas relações inter- analistas, como a 4.ª Batalha do Atlân-
meira pandemia provocada por um coro- nacionais que poderá favorecer o apro- Ɵ co – que se segue às ocorridas nas duas
navírus (neste caso, o SARS-CoV-2), pois fundamento de alguns destes, sobre- Guerras Mundiais e durante a Guerra Fria.
todas as outras, no úlƟ mo século, foram tudo num contexto de enfraquecimento
provocadas por vírus da gripe (infl uenza). do mulƟ lateralismo e de isolacionismo 2) Aumento da insegurança devido às
Em segundo lugar, porque (até agora) nunca dos EUA, que abdicaram, nos úlƟ mos difi culdades económicas e à instabili-
foi desenvolvida qualquer vacina para coro- anos, do seu papel de liderança global. dade social
navírus – ao contrário do que acontece com No que ao mar diz respeito, existem As alterações verifi cadas no quadro da
o vírus da gripe, para o qual existem vacinas. diversas disputas maríƟ mas, que se têm segurança nas úlƟ mas décadas acentua-
Isso permite antecipar que esta será uma vindo a arrastar e que poderão encon- ram o desenvolvimento de aƟ vidades
pandemia duradoura, fazendo lembrar as trar na conjuntura mais confrontacional ilícitas, como o terrorismo, a proliferação
palavras de Winston Churchill, em 1942, pós-pandemia terreno férƟ l para uma de armamento, as trafi câncias, as migra-
quando (após a vitória sobre as tropas nazis agudização. ções irregulares e a pirataria maríƟ ma.
na Batalha de El-Alamein) proferiu a céle- Assim, no Mediterrâneo Oriental, têm- Neste quadro, as difi culdades econó-
bre frase: “Isto não é o fi m. Não é sequer -se intensifi cado as disputas pelos direitos micas provocadas pela COVID-19 estão
o princípio do fi m. Mas é, talvez, o fi m do relaƟ vos à exploração de hidrocarbonetos a exponenciar a instabilidade social, a
princípio”. O mesmo se pode dizer sobre a
pandemia da COVID-19, relaƟ vamente à
qual estaremos, quanto muito, no fi m do
princípio.
TRÊS DINÂMICAS DO
AMBIENTE SECURITÁRIO
EfeƟ vamente, a COVID-19 está a provo-
car uma grave crise sanitária, uma severa
crise económico-fi nanceira e uma profunda
crise social, com importantes implicações
no ambiente de segurança. Não obstante, a
COVID-19, mais do que alterar radicalmente
o panorama de segurança mundial, veio,
sobretudo, contribuir para acelerar tendên-
cias e evoluções que já estavam em curso.
Nesse quadro, jusƟ fi ca-se refl eƟ r sobre três Ao longo da história as epidemias e as pandemias sempre foram grandes modeladoras da Humanidade
dinâmicas do ambiente securitário, com par- (na imagem, uma ilustração da novela “Os noivos”, de Alessandro Manzoni, que aborda, com grande
Ɵ cular infl uência no poder naval, sendo que realismo, a epidemia de peste bubónica de 1630, em Itália).
4 DEZEMBRO 2020