Page 30 - Revista da Armada
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REVISTA DA ARMADA | 560


               ESTÓRIAS                                                                                        67



                O TORNADO

























                                                                                                                      Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes











                 m dia, numa patrulha no Rio Grande de Buba, pelas 03:00H está-  e rezarmos! De repente, chocamos com qualquer coisa e algo pare-
              Uvamos junto à foz do Rio Sibijã à deriva, os motores desligados   cido com ramos e folhas caiu sobre nós. Tínhamos sido violenta-
              e ao sabor da corrente, botes presos um ao outro de través. Silêncio   mente projetados contra uma margem!... Sorte a nossa, porque
              total… Atentos a ruídos suspeitos ou vozes, Ɵ ritando de frio cau-  fi camos ali encalhados, mais protegidos até tudo serenar.
              sado pelo cacimbo, tentando proteger-nos com mantas, numa noite   O bote estava alagado, tudo boiava dentro dele e nós, encharcados
              escura como breu somente abrilhantada pelo céu estrelado, olhar as   até aos ossos! Começamos a escoar a água e a reorganizarmo-nos.
              estrelas poderia ser um espectáculo digno de se ver, se houvesse paz   O tornado demorou alguns minutos a passar, talvez nem dez! No
              de espírito, serenidade e conforto para as observar!   entanto, pareceram uma eternidade… Não sabíamos onde estáva-
               Ao longe, para sul, na linha do horizonte, de vez em quando ocor-  mos, nem onde estava o outro bote. Disparei um very light  para o ar,
                                                                                                             1
              riam uns clarões e ouviam-se estrondos surdos causados pelos ata-  para tentar sinalizá-los. E depois outro disparo, até que, bem longe,
              ques nocturnos do PAIGC aos quartéis de Guileje e Gadamael, perto   surgiu a resposta: um very light esverdeado e brilhante rasgou o céu.
              da fronteira com a Guiné-Conakry. Estes clarões duravam a noite   Só podiam ser os homens do outro bote que estava perdido…
              toda e serviam para nos orientarmos no rio. Sabíamos que, quando   Conseguimos por o motor a trabalhar e fomos procurá-los. Depois
              nos afastávamos de Buba, os clarões estariam à nossa esquerda   de uma hora de procura no escuro da noite, encontramo-los deses-
              e, quando regressássemos, esses clarões deveriam estar à nossa   perados, completamente inoperacionais, porque não conseguiam
              direita! Eram um instrumento de navegação infalível!  manobrar o bote.
               De resto, quando os nossos olhos se habituavam à escuridão, con-  Normalizamos a situação no que era possível e rebocámo-los de
              seguíamos vislumbrar, à distância, as sombras escuras da vegetação   regresso ao nosso quartel, numa viagem penosa, que duraria mais
              das margens do rio. Assim estávamos, quando reparei que se Ɵ nha   de duas horas. E os clarões que vinham de Guileje e Gadamael foram
              levantado um vento forte; apercebi-me que o horizonte estrelado   preciosos para nos ajudarem a orientar… Mais uma vez!
              começara a fi car encoberto por uma mancha escura gigantesca, que   Molhados, cansados, esfomeados, estávamos todos num estado
              se aproximava rapidamente… De repente, o vento intensifi cou-se,   deplorável! Fui caindo em mim… esƟ véramos no “olho do tornado”
              começou a chover intensamente, o céu rasgado por raios e trovões   e ơ nhamos acabado de assisƟ r e sobreviver a um dos mais perigosos
              estrondosos desabava por cima de nós! O rio encapelado e revol-  fenómenos tropicais que ocorrem em África!...
              toso, com ondas enormes… então, os cabos que seguravam os botes
              rebentaram e perdemo-nos uns dos outros, fomos arrastados e não                 Miguel Carmo Soares, 14.º CFORN
              sabíamos para onde nos levaria aquela tempestade infernal!        In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
               Ainda tentei pôr o motor a trabalhar para fugir do tenebroso tor-
              nado que Ɵ nha surgido de repente e caído em cima de nós sem
              dar tempo para nos refugiarmos e nos protegermos!... Nada, não   Nota
                                                                     Sistema de sinalização disparado de uma pistola especial para criar iluminação e
              era possível fazer nada a não ser agarrarmo-nos com todas as for-  1 melhorar a visão, ou um sinal de busca e socorro.
              ças aos cabos do bote, para não sermos projetados para a água…


              30   MARÇO 2021
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