Page 28 - Revista da Armada
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30 A QUESTÃO DA PASSAGEM INOFENSIVA
PARTE I
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INTRODUÇÃO em termos de regulamentação e de edifi cação legislaƟ va ,
sendo disso exemplo a publicação do Código Internacional
ecordando alguns conceitos já abordados em arƟ gos para a Protecção dos Navios e das Instalações Portuárias
Ranteriores, a natureza dos poderes que o Estado costeiro (designado vulgarmente Código ISPS), que iniciou vigência
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detém no mar territorial tem a caracterísƟ ca de exercício de em 1 de Julho de 2004 , e a entrada em vigor do Regula-
auctoritas soberana, embora limitados, circunstancialmente, mento nº 725/2004, do Parlamento Europeu e do Conse-
por conceitos que são um afl oramento do princípio da liber- lho, da União Europeia, de 31 de Março. Importa, pois, ana-
dade de navegação existente no Alto Mar, como seja o direito lisar o conceito do ius passaggii.
de passagem inofensiva, que encontra o seu fundamento
úlƟ mo na permissão do exercício da navegação por Estados O CONCEITO
terceiros . É devido a essa limitação que se caracterizam os
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poderes exercidos no mar territorial como sendo de Ɵ pologia Se a atribuição do poder de passagem a navios estrangei-
exclusiva, mas não plena. A jurisdicƟ o do Estado, sabemo-lo, ros signifi ca o reconhecimento internacional da necessi-
DIREITO DO MAR E DIREITO MARÍTIMO
exerce-se de modo disƟ nto nos diversos espaços, sendo que, dade de se uƟ lizarem os espaços maríƟ mos como via prio-
para lá do mar territorial, está-se perante espaços morfolo- ritária de comunicação, o seu carácter inofensivo revela,
gicamente de Alto Mar onde o Estado exerce certos poderes por outra parte, a clara preocupação de salvaguardar os
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específi cos e limitados pelo princípio da especialidade , que interesses do Estado costeiro, os quais, por razões ineren-
confi guram o conceito de poderes de jurisdição específi ca, e tes ao exercício da soberania, deverão ser atendíveis como
que se enquadram no âmbito da protecção e preservação do premissa fundadora . Como estabelece o arƟ go 19º da Con-
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meio marinho e dos recursos. venção, os valores principais a resguardar são a paz, a boa
Importa, por isso, atentar na evolução do tratamento deste ordem e a segurança do Estado costeiro , os quais, como
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insƟ tuto jurídico, e a sua regulação. se verifi ca, são conceitos de natureza incerta, o que torna
Em relação aos poderes exercidos pelo Estado costeiro a qualifi cação algo indeterminada, e impõe uma correcta
no mar territorial e nas águas interiores, a Convenção das confi guração. Quanto à paz, a ideia fundamental relaciona-
Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, apresenta -se com a proibição do uso da força numa perspecƟ va inter-
uma sistemaƟ zação e conteúdo material mais desenvolvi- nacional, sendo que a passagem de navios estrangeiros não
dos, e de regime mais aperfeiçoado, do que a Convenção de pode servir como circunstância jusƟ fi caƟ va para a quebra
Genebra de 1958, concluindo-se, contudo, que manteve, na de situações de paz que devem ser o sustento das relações
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sua essência, o mesmo perfi l de poderes . O trabalho jurídico entre sujeitos de Direito internacional, seja por se consi-
inovador da Convenção de 1982, nesta matéria, resultante derarem situações de ameaça, seja perante uma tomada
dos longos debates preparatórios, e a diversa concreƟ zação efecƟ va de medidas. Esta análise tem os seus fundamentos
do direito, é evidenciado pela Ɵ pifi cação, em sede do arƟ go no arƟ go 8º da Acta Final da Conferência de Haia de 1930,
19º, de onze situações expressas no seu nº 2, bem como o cujos debates estavam ainda impregnados do ambiente de
caso da alínea l), na qual se revela a adopção de um meca- edifi cação do Direito internacional , num quadro de pós-
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nismo abrangente, que afasta a noção de que o elenco do -primeira Grande Guerra, marcados, portanto, pela geopo-
arƟ go 19º é, juridicamente, fechado. Esta matéria tem sus- líƟ ca dos interesses.
citado polémica sobre a respecƟ va qualifi cação, e sobre a O conceito de boa ordem é concernente à preservação da
caracterísƟ ca de ser a norma taxaƟ va ou exemplifi caƟ va, boa convivência de uma determinada sociedade e da salva-
análise a que, pela sua relevância, voltaremos adiante. guarda das regras que a regem, num contexto igualmente
A própria sistémica usada em 1958 é diversa do método abordado na Conferência de Haia.
adoptado em 1982, sendo que é no seu arƟ go 17º – por- Por seu lado a segurança, que materialmente complementa
tanto na quarta norma que dedica a este direito (regulado o conceito de boa ordem, projecta-se num senƟ do de Esta-
nos arƟ gos 14º a 18º) – que o legislador de Genebra expres- do-poder e Estado-insƟ tuição. Alguns autores tendem a dar
sou o princípio de que “Os navios estrangeiros que exerçam ao senƟ do uma valoração mais militar, um senƟ do clássico
o direito de passagem inofensiva devem conformar-se com de jus belli, porque revela um fenómeno ligado à integridade
as leis e regulamentos promulgados pelo estado ribeirinho territorial e à soberania estadual sobre o espaço-território,
de harmonia com os presentes arƟ gos e as outras regras do enquanto que outros tendem a ler um senƟ do de segurança
direito internacional e, em parƟ cular, com as leis e regula- económica, ou mesmo ambas. Face à evolução das novas
mentos relaƟ vos ao transporte e navegação”. doutrinas do sea law enforcement, e bem assim à nova con-
O direito de passagem inofensiva, ius passaggii sive transi- fi guração das noções de ameaça, tendemos, claramente, a
tur inoccii, consƟ tui matéria de importância acrescida num considerar a ofensa económica – tomada num senƟ do amplo
quadro de avaliação do factor segurança costeira , tal como – como determinante para o senƟ do de segurança, uma vez
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é entendido atualmente face às inúmeras ameaças a que os que é na depredação dos recursos, e na sua ofensa ao meio
Estados ribeirinhos estão sujeitos, matérias a que a Inter- marinho por actos dolosos e negligentes poluentes, que se
naƟ onal MariƟ me OrganizaƟ on (IMO) e a União Europeia debatem as grandes questões da actualidade em termos da
têm dado, nas úlƟ mas duas décadas, especial prioridade law of the sea ou do shipping.