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REVISTA DA ARMADA | 561


               ESTÓRIAS                                                                                        68


              QUEM NÃO SE SENTE!...



                evereiro de 1957. Faço parte de um grupo de sar-
              Fgentos e praças que vai aos Estados Unidos buscar
              um navio. Embarcámos no petroleiro Sam Brás e ala
              rumo a New York. Porém, para nosso espanto, apor-
              támos em Ponta Delgada para, pasme-se, assisƟ rmos                                                      Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes
              à prisão, pela PIDE, do 2º-sargento electricista Hum-
              berto. Cena indescriơ vel que nos chocou profunda-
              mente. Momentos depois a largada rumo, agora sim,
              a New York onde nos é proporcionada a vista, inol-
              vidável, da Estátua da Liberdade. Já no aeroporto e
              fazendo jus ao ditado “quem tem cu, tem medo”, logo
              se formou bicha numa máquina para fazer seguro de
              vida. Era a primeira vez que íamos pelo ar.
               O avião, um quadrimotor velho como a sua tripu-
              lação, excepto a hospedeira que era jovem e bonita,
              chamejava por tudo o que era motor. Fez-se uma
              escala em Oklahoma, certamente para descanso dos
              motores, e logo rumo a S. Francisco da Califórnia, pas-
              sando por cima das Montanhas Rochosas. Espectacular. Depois, já
              alojados na Base Naval de Treasure Island, a novidade  da televisão.
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              Apagávamos a luz para a ver melhor. Vinha depois o americano da
              ronda e acendia a luz. O que pensaria ele de nós?
               Finalmente, o navio. O ex-escoltador da U.S. Navy Formoe iria ser
              entregue à nossa Marinha já com novo nome aprovado: Diogo Cão
              (F333). Em tudo diferente do que conhecíamos: a corrente alterna
              (440 Volts, 60 Hz); caldeiras, máquinas e quadros eléctricos que   A parƟ r da esquerda: O autor, então com 32 anos, Mrs. Ben e Chief Ben,
              permiƟ am Split Plant (separação) e Cross ConnecƟ on (paralelo); um   no Nite Club Romance, em Tijuana, México, em 1957.
              DRA (Dead Reckoning Analyzer) que transmite à mesa de ploƫ  ng
              info da girobússola e assim revela, a todo o momento, a posição do   A alegria de visitar Disneyland Park (onde vivem o Mickey, o Pato
              navio; circuitos telefónicos disƟ ntos; circuitos eléctricos bem defi ni-  Donald, a Branca de Neve e os sete anões,…); a cerimónia de entrega
              dos e demarcados a cores, conforme a sua importância relaƟ va, etc.,   do navio tendo como patrono “João Cabrillo” e com a presença do
              etc. Enfi m, toda uma concepção diferente da habitual.   Comandante Sarmento Rodrigues. Já rumando para Sul, as visitas
               Estudo de manuais, exercícios, muitas noites perdidas a conferir   aos portos da Guatemala e das Honduras (muita miséria); a passa-
              sobressalentes e listar as suas faltas. Estranha maneira de começar   gem pelo Canal do Panamá, a subida e a descida, através de eclusas,
              a amar um navio.                                    ao arƟ fi cial Lago Gatún, a mais de vinte metros acima dos oceanos e,
               Nas folgas, a passagem pela Bay Bridge, deitar um olho de soslaio   num abrir e fechar de olhos, passámos do Pacífi co para o AtlânƟ co; a
              para o Presídio de Alcatraz e Oakland, onde vivem muitos portugue-  visita à Venezuela, porto de La Guaira, a ida a Caracas, por uma larga
              ses com as suas saudades, e os convites da Casa de Portugal, da Casa   auto-estrada ladeada de prédios alơ ssimos; República Dominicana,
              do Algarve, da Casa… não chegávamos para as encomendas.  São Domingos e o barracão com centenas de slot machines e nem
               Depois, o regresso e dois casos inolvidáveis assinalaram a estada   uma vaga para, também, tentarmos a sorte; Cuba, Havana, o bordel
              na Base Naval de S. Diego: a visita ao Nite Club Romance em Tijuana   e paraíso dos turistas americanos, prosƟ tuição, fi lmes eróƟ cos, tudo
              (México), a convite do meu amigo Chief Ben (electricista da Formoe,   a pedir uma grande limpeza, ainda com o ditador sargento Fulgên-
              agora Diogo Cão) e esposa. Acompanhava-nos um outro convidado,   cio BapƟ sta, mas com Fidel Castro já na Sierra Maestra, como nos
              sargento da aviação da U.S. Air Force, boa fi gura, D. Juan assumido   disse, a medo, um português, pianista do bar; novamente nos Esta-
              e atrevido. Contudo, nem sempre a sorte o favoreceu, a avaliar pela   dos Unidos. BalƟ more e um salto a Washington D.C.; o Pentágono; o
              “explosão” da senhora Ben em pleno dancing. Logo o Chief Ben deu   monumento a Lincoln, sim, o homem que aboliu a escravatura e tem
              a festa como acabada e uma ideia perversa lhe ocorreu. A ocasião   mais estátuas no mundo...
              surgiu com uma ida do galã aviador aos lavabos. Num ápice estáva-  Com saudades do mar…
              mos no carro e ala rumo a S. Diego… deixando o aviador “em terra”.
              O segundo caso é o registo de uma cena inimaginável (e assim                                Teodoro Ferreira
              inesquecível) passada no clube dos sargentos da Navy! Então não                               1TEN SG REF
              é que o Chief de serviço (daltónico e bêbado) se lembrou de barrar   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfi co
              a entrada do Sargento A.E. Oliveira Pereira “Ciopa”, por este não lhe
              parecer “branco”! Indignação geral, protestos e insultos (no mais
              puro português vernáculo) ao americano e sua família. O pior foi o   Nota
                                                                     Só em Julho é que tenho conhecimento da nossa RTP que, conforme a Internet,
              “Ciopa” levar o caso demasiado a sério. Sofrimento que durou dias,   1 iniciara a sua emissão a 7 de Março.
              lágrimas e autoreclusão no paiol dos electricistas.


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