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REVISTA DA ARMADA | 569

          ESTÓRIAS                                                                                         76





            GUINÉ 1971-72



            PARTE III  -  OS RIOS E OS PETISCOS…











         Autor: STEN TSN-ARQ Paulo Guedes











             uarnições como aquela da Bellatrix, decerto não haveria mui-  o almoço e o jantar! Na minha estreia no Buba, e à primeira maré
         Gtas…  passaram  por  lá,  durante  o  meu  tempo,  dois  Mestres,   que lá apanhámos, fui ver, curioso, a faina de pesca. As linhas
         Cabos por sinal, que nunca me calhou nenhum Sargento, mas que   eram  cordéis  e  alguns  anzóis  alfinetes  revirados.  Isco,  quando
         acabaram dando conta do recado; Artilheiros, destemidos e de pon-  punham, era uma côdeazinha de pão. E mesmo assim, mal a pri-
         taria afinada; Fogueiros, sem os milagres dos quais nunca teríamos   meira linha tocava na água, logo um pargo, um belo pargo, aí com
         ido a lado nenhum; e Radiotelegrafistas, que até conseguiam comu-  uns vinte e cinco ou trinta centímetros, começava a ser recolhido.
         nicar com Bissau (e com o EMA!) do meio do tarrafo do Cacheu!...  Mas esse não o provámos, que vinha ele já metade fora de água
           Pescadores eméritos, foi graças a eles que, para os cruzeiros do   quando, vinda lá de baixo, uma barracuda quase com um metro,
         Buba, só levávamos arroz, batatas e verdes – as proteínas arran-  levou pargo, anzol, ponta da linha, enfim tudo. Por estas e por
         javam-se lá, diariamente!                            outras, é que no Buba só se pescava com estorvo de aço…
           O meu primeiro cruzeiro foi no Cacheu. E dessa primeira vez, como   E era assim que, com vinte a trinta minutos de pesca diária, as-
         de resto nas duas ou três seguintes, segui escrupulosamente o que   segurávamos o peixe fresco (e que peixe!) para as refeições.
         mandavam os livros e aconselhavam as boas e seguras práticas de   Fui duas ou três vezes à foz do rio Cumbijã. O abastecimento de
         navegação: ia ao mar, contornando o continente até ás bóias de   Bedanda e de outros aquartelamentos para aqueles lados era fei-
         marcação do canal (lembram-se?, aquelas que não estavam lá, mas   to por comboios de batelões civis (às vezes mais de dez) através
         que vinham nas cartas e qu’a gente calculava que deviam ser mais   do rio Cumbijã, apoiados por uma LDM.
         ou menos por ali…), e daí, pimba: direito a terra e Cacheu acima.  Competia, no entanto, às LFPs o apoio de navegação aos com-
           Só quem lá esteve é que sabe de que é que eu estou a falar. Da-  boios até à foz do dito rio, ziguezagueando pelos bancos de areia,
         quele braço de mar, com mais de duzentos quilómetros de compri-  em animada ronda de bóias inexistentes, entre os Bijagós e terra
         do, com quase um metro de amplitude de maré em Farim, daquela   firme. Já dentro do Cumbijâ, pernoitava-se entre a ilha de Como
         espécie de canal de perfil em U, onde corria um líquido viscoso   e um areal; no dia seguinte regressávamos à base, e o restante
         verde-escuro-acastanhado que alguns diziam ser água (no que eu   comboio continuava rio acima, sob o comando da LDM.
         nunca acreditei), com o tarrafo claustrofóbico emergindo erecto   Na Guiné havia duas qualidades de ostras: as do tarrafo e as da
         das margens, por vezes até vinte metros de altura, com os olhinhos   rocha. As da rocha, em mar aberto, eram naturalmente as melho-
         dos crocodilos a espreitarem por entre o emaranhado de raízes…  res, mais limpas, mais frescas, melhor depuradas, batidas pelas
           No Cacheu, os dias passavam mais devagar do que nos outros   ondas. E dessas, as de Maior fama eram as dos baixos do Tombali.
         sítios, devia ser das horas serem mais compridas, ou então da-  Graças a Deus e a cuidadosos planeamentos que faziam coinci-
         quela humidade grossa, esverdeada (no Cacheu até a humidade   dir a passagem da Bellatrix no local com as horas das marés vazas,
         era esverdeada…) que se metia dentro dos relógios e lhes atrasa-  parava-se normalmente (com uma avaria, já se vê), arriava-se o
         va os ponteiros.                                     bote e lá se ia encher os baldes com os afrodisíacos bivalves.
                                                               E depois era fartar das ditas, com um branquinho que, graças a
           Era no Cacheu que a Bellatrix registava os consumos mais baixos   Deus, nunca faltou!
         de “gasoil” e mais altos de líquidos edíveis: em média, duas caixas
         de vinho, três garrafas de whisky e três garrafas de gin por cruzeiro.
           O Rio Grande de Buba, assim chamado, não tinha nada a ver
         com o Cacheu. Era uma ria grande e larga, espraiada, de águas           José Manuel Garcia da Costa Bual, 14.º CFORN
         limpas e claras, com a savana a chegar às margens.               In Crónicas Intemporais da Guerra e da Fraternidade, 2019
           Riquíssimo em peixe (tanto em quantidade como em qualida-
         de), de tal modo que, como já disse atrás, se pescava diariamente   N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.


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