Page 31 - Revista da Armada
P. 31
REVISTA DA ARMADA | 577
01
OS ÚLTIMOS NATAIS DA GUERRA
II – GUINÉ 1973
Autor: 2TEN TSN-ARQ Paulo Guedes
io Cumbijan. Véspera de Natal de 1973. Naquela noite muito Como o meu navio estava na altura em reparações, podia
Rescura, o navio onde me encontrava embarcado estava ter passado esse Natal comodamente instalado em Bissau.
fundeado, em total ocultação de luzes, perto da margem onde, Mas, longe da família, aceitei sem hesitar o convite do Comandante
em terra, a pouca distância, se desenrolavam os combates. da LFG Lira para o acompanhar naquela missão. Para além de
Via-se os clarões dos rebentamentos das granadas, ouvia-se estar distraído e de usufruir da companhia de um camarada que
o matraquear das armas ligeiras e na fonia ouviam-se os apelos eu muito estimava, fui aliciado pelos mimos comestíveis que
daqueles jovens militares que ali estavam a ser duramente a sua mãe lhe enviava, o que tornava o convite irresistível.
atacados, por um inimigo mais bem armado e, acima de tudo, Por outro lado, eu podia dar-lhe a minha colaboração na
muito mais mentalizado para combater naquela guerra. navegação daquele rio, a qual requeria particular atenção.
Normalmente na data natalícia havia um cessar fogo tácito, Como era natural, naquela ocasião procurei isolar-me na ponte
em que os guerrilheiros, a quem chamávamos terroristas, do navio para pensar na família que se encontrava em Lisboa,
respeitavam as nossas comemorações cristãs, que para uma e em especial na minha esposa e nos nossos três filhos que quase
parte deles não tinham especial significado. não conheciam o pai. Naquela hora também pensava nos pais
Porém naquele ano e naquele cenário de guerra, daqueles jovens que se encontravam a combater ali tão perto,
por determinação do novo general Comandante-chefe, que pais esses que estariam provavelmente à lareira das suas casas ou
algum tempo antes tinha substituído o BGEN Spínola, foi realizada até numa qualquer missa do galo, certamente a rezar pelos seus
uma grande operação de ataque ao santuário inimigo, situado na filhos e a implorar pelo seu regresso.
península do Cantanhês. Na escuridão da noite, ninguém viu as lágrimas que então me
Para tal fim, SEXA o Governador-geral e Comandante-chefe escorreram pela cara…
determinou que se fizesse a alteração das datas do dia de Natal
e do dia de Ano Novo, que passaram para o dia 27 de dezembro
e para o dia 3 de janeiro, no pressuposto que assim iríamos Luís Pereira Vale
apanhar o inimigo de surpresa. Não foi isso que aconteceu, CALM REF
e o que se passou foi a confirmação da sua superioridade no
terreno, que se iria acentuar até ao 25 de abril de 1974. N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.
SETEMBRO / OUTUBRO 2022 31