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REVISTA DA ARMADA | 577

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          OS ÚLTIMOS NATAIS DA GUERRA



          II – GUINÉ 1973































         Autor: 2TEN TSN-ARQ Paulo Guedes











            io Cumbijan. Véspera de Natal de 1973. Naquela noite muito   Como  o  meu  navio  estava  na  altura  em  reparações,  podia
         Rescura,  o  navio  onde  me  encontrava  embarcado  estava   ter  passado  esse  Natal  comodamente  instalado  em  Bissau.
          fundeado, em total ocultação de luzes, perto da margem onde,   Mas, longe da família, aceitei sem hesitar o convite do Comandante
          em terra, a pouca distância, se desenrolavam os combates.   da LFG Lira para o acompanhar naquela missão. Para além de
           Via-se  os  clarões  dos  rebentamentos  das  granadas,  ouvia-se    estar distraído e de usufruir da companhia de um camarada que
          o matraquear das armas ligeiras e na fonia ouviam-se os apelos   eu  muito  estimava,  fui  aliciado  pelos  mimos  comestíveis  que
          daqueles  jovens  militares  que  ali  estavam  a  ser  duramente   a  sua  mãe  lhe  enviava,  o  que  tornava  o  convite  irresistível.
          atacados, por um inimigo mais bem armado e, acima de tudo,   Por  outro  lado,  eu  podia  dar-lhe  a  minha  colaboração  na
          muito mais mentalizado para combater naquela guerra.  navegação daquele rio, a qual requeria particular atenção.
           Normalmente  na  data  natalícia  havia  um  cessar  fogo  tácito,   Como era natural, naquela ocasião procurei isolar-me na ponte
          em  que  os  guerrilheiros,  a  quem  chamávamos  terroristas,   do navio para pensar na família que se encontrava em Lisboa,
          respeitavam  as  nossas  comemorações  cristãs,  que  para  uma   e em especial na minha esposa e nos nossos três filhos que quase
          parte deles não tinham especial significado.        não conheciam o pai. Naquela hora também pensava nos pais
           Porém  naquele  ano  e  naquele  cenário  de  guerra,    daqueles jovens que se encontravam a combater ali tão perto,
          por  determinação  do  novo  general  Comandante-chefe,  que   pais esses que estariam provavelmente à lareira das suas casas ou
          algum tempo antes tinha substituído o BGEN Spínola, foi realizada   até numa qualquer missa do galo, certamente a rezar pelos seus
          uma grande operação de ataque ao santuário inimigo, situado na   filhos e a implorar pelo seu regresso.
          península do Cantanhês.                              Na escuridão da noite, ninguém viu as lágrimas que então me
           Para  tal  fim,  SEXA  o  Governador-geral  e  Comandante-chefe   escorreram pela cara…
          determinou que se fizesse a alteração das datas do dia de Natal
          e do dia de Ano Novo, que passaram para o dia 27 de dezembro
          e  para  o  dia  3  de  janeiro,  no  pressuposto  que  assim  iríamos                     Luís Pereira Vale
          apanhar  o  inimigo  de  surpresa.  Não  foi  isso  que  aconteceu,                            CALM REF
          e  o  que  se  passou  foi  a  confirmação  da  sua  superioridade  no
          terreno, que se iria acentuar até ao 25 de abril de 1974.  N.R. O autor não adota o novo acordo ortográfico.


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