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REVISTA DA ARMADA | 577
PREDOMÍNIO E PODER DO SIMBÓLICO
4. RELEVÂNCIA DO SIMBÓLICO NO QUOTIDIANO - PARTE II
«No princípio, existia apenas um cérebro primata. E, das profundezas dessa rede bastante emaranhada de 86 mil milhões de neurónios,
moldada através de um percurso evolutivo cego e de múltiplos big bangs ao longo de um período de milhões de anos, emergiu a mente
humana. Sem limitações ou restrições, expandindo-se rapidamente como uma espécie de plasma biológico, não demorou a fundir-se
num continuum, resultando numa mistura comburente de andar bípede, destreza manual, construção de ferramentas, linguagem
oral e escrita, ligações sociais complexas, pensamento abstrato, introspeção, consciência e livre-arbítrio. […] E, depois, cerca de 100
mil anos após o seu despontar explosivo, o Verdadeiro Criador olhou para trás, na direção dos seus milagrosos feitos, e viu, para seu
próprio espanto, que tinha criado todo um novo Universo».
Miguel Nicoledis,
Neurocientista
SÍMBOLOS E RITUAIS
m virtude de se assistir ao desaparecimento da orientação
Econferida pela perenidade dos símbolos e dos rituais, muitos
sentem, literalmente, que a realidade em que habitam perde
firmeza e parece descolar do seu contacto. Em duas palavras, não
lhes confere sustentação nem segurança. Nesta aceção, os rituais
são vistos como técnicas simbólicas que permitem a instalação
do ser humano num determinado lugar, no “seu mundo”.
Tornando o mundo um lugar cognoscível e fiável, transformam
algo de impessoal como “estar no mundo” num acolhedor “estar
em casa”. São, no tempo, o que a casa é no espaço, isto é, tornam
habitável o tempo. Mais importante, tornam-no tão visível como
uma casa é habitável. Ordenam-no, organizam-no e, sobretudo,
conferem-lhe coerência. É por isso que muitos sentem que ao
tempo parece hoje faltar a solidez ou a patine que lhes é familiar.
Se demasiado padronizado e asséptico, o tempo parece escapar
e deixa de ser habitável.
Na perspetiva de Hannah Arendt (1906-1975), é também
a durabilidade das coisas que as torna “independentes da
existência do homem”. São as coisas e os rituais que têm por Fotos CFR António Gonçalves
missão estabilizar a vida humana, tornando-a duradoura e, ao
mesmo tempo, coerente e dotada de sentido. É esta necessidade
intrínseca do ser humano que explica o apego a determinadas
coisas e rituais, ou meras rotinas. As mais das vezes sem
particular valor ou relevância, são, contudo, cruciais para
conferir estabilidade ao ser: um livro amarelecido, um bibelot
partido, um casaco coçado, um determinado chá, um certo
caminho, uma música ou sonoridade familiares, um boné puído,
aquele banco de jardim, etc. Na realidade, tudo o que evoca
memórias confere conforto, segurança e identidade. Na opinião
de Han, as coisas tornam o tempo tangível enquanto os rituais
tornam o tempo transitável. Em ambos os casos, materializam-
-no. No mesmo passo, é também o simbolismo das rotinas que
concorre para estribar o quotidiano, razão pela qual muitos se
sentem deslocados ou perdidos quando, por algum motivo, não
cumprem os seus hábitos rotineiros, fenómeno acentuado pelo
deslaçar das ligações sociais e avançar da idade.
A utilização de símbolos é uma caraterística intrinsecamente
humana e precede qualquer linguagem, sendo indissociável
de todas as formas de arte. O poeta brasileiro Ferreira Gullar
(1930-2016) defendia, inclusivamente, que “a arte existe porque
a vida não basta”. Que o mesmo é dizer, a arte existe porque
a mente interpreta o que a rodeia através das imagens que
26 SETEMBRO / OUTUBRO 2022