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REVISTA DA ARMADA | 577
formula com base nos impulsos captados pelos cinco sentidos,
conferindo significado personalizado a tudo com que toma
contacto ou conhece. O que por sua vez induz o reordenamento,
segmentação e criação de imagens pela própria mente, processo
do qual resultam novas imagens, e assim sucessivamente.
É Miguel Nicoledis quem melhor sintetiza esta dinâmica: «as
manifestações artísticas são consequência de mentes humanas
inquisitivas e persistentes, ansiosas por projetarem no mundo
exterior as imagens dos seus próprios universos neuronais
internos». É esta, no fim de contas, a génese do processo criativo
subjacente à evolução da humanidade, e que hoje, com o
desenvolvimento tecnológico e a inteligência artificial, está a sofrer
uma aceleração exponencial com rumo indeterminado ou, pelo DR
menos, ainda não antecipável. Não obstante, a essência primária
da arte tem como propósito conferir à vida um horizonte de dos signos: é a sociedade que usa os signos, para comunicar, para
continuidade, permanecendo, ao mesmo tempo, como legado e informar, para mentir, enganar, dominar e libertar».
ligação às gerações vindouras, que a irão assimilar de forma distinta Por norma, o símbolo é entendido como alguma coisa que está
e de acordo com o quadro de referências coetâneo, delimitado, no lugar ou representa outra. Funciona, assim, como uma espécie
a título individual, pelo respetivo acervo de imagens mentais. de mediador, estabelecendo a ponte entre um e outro, conferida
Na opinião do antropólogo Leslie White (1900-1975), o símbolo pela capacidade interpretativa própria do cérebro humano.
é também a unidade básica do comportamento humano. Todavia, nem sempre representa o objeto, a ideia ou a virtude na
A civilização só existe em razão do comportamento simbólico que é sua plenitude, mas, por via de abstrações de ordem muito diversa,
característico da humanidade. White constatou que neste aspeto revela tão somente uma certa perspetiva ou finalidade, de uso mais
a diferença entre humanos e animais é sobretudo qualitativa pragmático ou até mais abrangente. Na maior parte dos casos,
e não quantitativa. Com efeito, enquanto os primeiros criam podemos sempre passar do símbolo ao alusivo se formos capazes
símbolos indispensáveis à existência e vivência em sociedade, de efetuar o caminho inverso, per filo e per segno. É nesta vertente
os animais, apesar de poderem ser condicionados por símbolos, que radica a nossa capacidade para compreender e construir
não dispõe de faculdade mental para os criar. O ser humano é, enigmas. Ao símbolo é, por isso, inerente uma certa tensão entre
em razão disso, um ser eminentemente sensorial e, por dois sentidos e duas interpretações, antes mesmo de se traduzir
conseguinte, o produto cognitivo resultante da mescla de numa tensão entre o sentido e a realidade. Neste quadro, o
imagens, sons, aromas, sabores e texturas. São as formas e símbolo pode ser designado como “o sentido do sentido”.
matizes das cores numa imagem, a sequência de notas e silêncios Os termos sinal, signo, insígnia e símbolo radicam no grego
numa música, os aromas e os odores de um lugar ou de alguém, súmbolon. Originalmente, consistia num objeto dividido entre
o hospedeiro e o hóspede, partes que transmitiam aos seus
os diferentes paladares e sabores que compõem uma refeição,
e as múltiplas texturas que experienciamos no quotidiano que descendentes. Pela inexistência de contactos regulares em
épocas muito recuadas, a aproximação dessas partes servia
despertam sentimentos. E são precisamente os sentimentos mais para confirmar a relação de hospitalidade estabelecida entre os
genuínos que fomentam as predileções pessoais, justificando a respetivos ascendentes, que também os vinculava.
opção por determinado produto ou marca em detrimento dos Enquanto forma de reconhecimento, a perceção simbólica
demais, constituindo, assim, uma escolha particularmente apreende e estabelece empatia, primariamente com aquilo que
subjetiva e nada racional, atualmente cada vez mais condicionada é perene e, ao mesmo tempo, com o que lhe é mais próximo
pelos algoritmos que, segundo Harari, “já nos conhecem melhor ou familiar. É muito por via da utilização dos símbolos que a
do que nós próprios”. sociedade se liberta e, em certa medida, descora o caráter
Chegados aqui, impõe-se a pergunta que a muitos inquieta:
tudo o que vemos, ouvimos e sentimos existe de facto ou trata-
se de uma pseudorrealidade ou realidade parcial concebida,
a título individual, pela interpretação que cada cérebro faz dos
sinais captados pelos respetivos sentidos? Qualquer que seja a
resposta que cada um encontre para esta questão – e a resposta
irá seguramente evoluir no tempo, em função das vivências, dos
conhecimentos e da idade – os humanos são seres conjunturais
que habitam no domínio do simbólico. É através do simbólico e da
sua perenidade que edificam todas as relações e se identificam,
seja com pessoas, objetos, conceitos ou dinâmicas.
MANIFESTAÇÃO DO SIMBÓLICO
Na maior parte dos casos, quando utilizamos símbolos indicamos
coisas particularmente concretas. Noutras situações, porém,
aludimos somente a ideias, virtudes ou meras vontades que elas
evocam, sem que isso se traduza necessariamente em maior
superficialidade, como a priori seríamos levados a supor. Para o
escritor, filósofo e semiólogo Umberto Eco (1932-2016) «para lá
do signo definido teoricamente, existe o ciclo da semiose, a vida
da comunicação, e o uso e a interpretação que é operada a partir DR
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