Page 306 - Revista da Armada
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mar uJustiça}}, a clamar uBondade», a clamar ((Huma- o seu discurso foi interrompido com vivas ao
nidade»! Senhor Comandante, à Marinha e à Pátria, ao mesmo
Quando leio estas narrativas e penso na maneira tempo que muitos atiravam com os bonés ao ar.
como na Marinha se procede em todos os casos em Depois, o comandante pediu aos oficiais que o
que está em jogo a humanidade e o respeito pelo acompanhassem, e dirigimo-nos todos para a sua
semelhante, seja ele qual for, sinto-me orgulhoso de camarinha, sem saber bem o que se tinha passado.
pertencer a esta secular corporação, onde reina a com- Ali fomos encontrar o capitão·de-mar-e..guerra
preensão e o bom senso na administração da dis- Mendes Norton, que tinha abusivamente assumido o
ciplina. comando para, de conivência com outros navios e
A primeira prova do que acabo de dizer tive-a, era forças de terra, tentar derrubar o governo constituído,
ainda guarda-marinha, e deve ter contribuido grande- o que não se concretizou por terem sido detidos, a
mente para a minha formação de oficial. tempo, os comandos das forças terrestres implicadas.
Estava embarcado, para fazer tirocínios, no Aviso Sem um remoque ou insulto, o legítimo coman-
de 1.a Classe <!Bartolomeu Dias» do qual era coman- dante Correia da Silva, deu voz de prisão ao comte.
dante o capitão-de·mar-e-guerra Correia da Silva, Norton frisando apenas que parecia impossível que ele
conde de Paço O'Arcos. tivesse escolhido exactamente o navio de um seu
Naquele tempo, os navios estacionavam no Qua- camarada de curso e amigo, para fazer uma revolução.
dro dos Navios de Guerra, zona do rio reservada em Seguidamente mandou que o imediato o acompa-
frente do Arsenal e do Terreiro do Paço, amarrados a nhasse a terra e o entregasse às autoridades superio-
bóias, dispostas segundo determinado esquema, que res da Marinha. Ele próprio o acompanhOU ao portaló,
previa distâncias suficientes para rodarem com a maré, mandando formar a guarda para as devidas honras.
para as manobras de amarrar e largar, etc .. Para irmos E teve que se impor ao clarim que não queria tocar
para bordo, à excepção do comandante que podia ir a sentido .
.:i civil, fardávamo-nos na Casa da Balança e seguía- Finalmente, serenados os ânimos, o comte. M. Nor-
mos normalmente nas embarcações do navio que, para ton, uma bonita figura de marinheiro, impecavelmente
o efeito, esperavam na Caldeirinha, uma pequena doca fardado, fez a continência ao comandante do navio e
situada onde é agora a parte Leste da parada do Edi- à bandeira e embarcou no gasolina, seguindo para a
fício da Marinha. Caldeirinha do Arsenal. Vários marinheiros foram
No dia 10 de Setembro de 1935, ao chegar ao presos também, sem quaisquer manifestações de
Arsenal, notei que algo de anormal se estava a pas- rancor.
sar. Encontrei muitos oficiais na Casa da Balança, E assim acabou este episódio triste que havia de
ficando a saber que a guarnição do navio se tinha trazer graves consequências para alguns dos revolto-
revoltado e que o patrão do gasolina, que nos havia sos, por desobediência a leis que têm que ser cumpri-
de levar para bordo, tinha ordens para transportar das e ultrapassam a amizade e a camaradagem que
apenas sargentos e praças e que fariam fogo sobre são apanágio da Marinha.
qualquer embarcação que se aproximasse com oficiais. Não resisto á tentação de contar um outro, dos
Juntámo-nos todos no cais de embarque, com o muitos de que tenho conhecimento, passado também
gasolina atracado, à espera de ordens. A certa altura a bordo de um navio de guerra. Foi-me contado por
apareceu o comandante que disse que ele seguia para um camarada de curso e amigo muito intimo, poucos
bordo mas que não obrigava nem levava a mal aos ofi- dias depois de ter ocorrido.
ciais que não quisessem ir. Certa noite, no ano de 1936, navegava o c/torpe-
Como é evidente, embarcámos todos e o coman- deiro uTâmega» de Lisboa para o Porto, debaixo de
dante mandou largar, dando ordem ao patrão para forte temporal, sob o comando do capitão-tenente
tentar atracar ao navio. mesmo que de bordo abrissem Barahona e Costa, marinheiro experimentado e de rija
fogo. E, para que de lá o vissem bem, foi sempre de têmpera. Ia de quarto á ponte o tal camarada, então
pé e no compartimento de vante, como se quisesse segundo-tenente.
cobrir-nos com o próprio corpo. Lembro-me que um A certa altura, o cabo de quarto veio comunicar-
camarada do meu curso que ia junto a mim, desabo- ·lhe que o cozinheiro da guarnição estava com um
toou os atacadores dos sapatos, recomendando·me ataque de loucura, armado com uma faca de cozinha
que fizesse o mesmo antes de irmos no maJagueiro! e ameaçava de morte qualquer um que entrasse na
Já próximo do navio, vimos a guarnição pratica- coberta, donde já tinham fugido todos para o convés.
mente toda em cima, alguns armados, mas a verdade Sem saber bem o que devia fazer, tomou a decisão de
é que o gasolina atracou sem qualquer oposição. O mandar chamar o comandante, que ia deitado,
comandante saltou, com a agilidade de um guarda- expondo-lhe a situação.
-marinha, para o patim inferior, galgou as escadas a Sem a minima hesitação, este dirigiu-se á escoti-
dois e dois degraus e, recebido com as honras da lha da coberta e, sem atender ás recomendações dos
Ordenança, mandou o clarim tocar a unir juntando-se que diziam ser um perigo ir lá abaixo, desceu as esca-
toda a guarnição à popa. Subiu então para cima do das, e avançando para o pobre louco, que brandia
xadrês que cobria uns cabeços e falou: - Marinhei- ameaçadoramente a faca, ordenou:
ros, disseram em terra que a guarnição do meu navio - Dá-me já essa faca ...
estava revoltada e que faria fogo sobre qualquer ofi- E o cozinheiro baixando os braços, entregou-lha
cial que tentasse embarcar. Não acreditei e, como se imediatamente, desatando a chorar e pedindo perdão.
vê, tinha razão ... Neste caso, como no do I!B.Oias», julgo poder tirar
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