Page 305 - Revista da Armada
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A Marinha e a disciplina
capitão-tenente da Reserva Pinto Machado, tra pelo pa.Jz inteiro, esperando que Sua Majestade El-
ilustre redactor desta Revista e vereador da -Rei o sanccione com o seu augusto «veredictumll,
O Câmara Municipal de Lisboa, teve a amabili· como vivem em África todos esses homens que as leis
dade de me enviar fotocópia de um artigo publicado enexoraveis atiraram para o desterro, longe do cari-
na «Ilustração Portuguesau, III volume - 8 de Abril nho e afecto da famiJia, longe deste pedaço de terra
de 1907, que tem por título uPeor que a morte - como livre tanta vez ensopada em sangue generoso de
ViV8pl em África os marinheiros condenados em S. Ju- martyres, longe deste céu e deste sol que são como
lião da Barrau. uma caricia afável de luz abençoada.
Não fazendo a mínima ideia do que se tratava - Há em Luanda duas fortalezas que servem de
o artigo nada dizia que nos elucidasse - vali-me de presidio: - a fortaleza de S. Miguel e a Fortaleza do
um livro que muito me tem ajudado em casos seme- Penedo, em S. Pedro da Barra. (. . .)
lhantes - !cLisboa - História das suas glórias e Mas se a fortaleza de S. Miguel representa o
catástrofes», de Rocha Martins. Ali se refere uma paraiso para os presidiários civis, a fortaleza do Penedo
insubordinação de marinheiros nos cruzadores cd). Car- é, para os militares, o inferno com os seus horrores
los ln e (Nasco da Gama». mais espantosos, é a morte lenta, é a agonia nas
Tinha agora uma pista para encontrar o que pre- trevas, o estertor desamparado de todo o socorro
tendia nessa valiosíssima obra do comandante A. Mar- humano, - o emparedamento em vida! Os marinhei-
ques Esparteiro, ((Três Séculos no Marli, onde não falta ros condenados em S. Julião deixaram de ser homens
nada que diga respeito aos navios da nossa Armada, para reverterem à categoria de sombras. Em volta
de 1640 a 1940 - lá estava ... d'eles tudo é silêncio e espanto.(. .. )
No dia 8 de Abril de 1906 a guarnição do IID. Car- A C/Cova da Onçall, uma das prisões de S. Pedro da
los b (4253 tons. de deslocamento, 30 peças de arti- Barra, onde estão alguns dos marinheiros, é uma casa
lharia de vários calibres, além de outro armamento, subterranea que mede 6 a 7 metros de comprido por
e 473 homens, entre oficiais, sargentos e praças) 5 a 6 de largo.
insubordinou-se contra o comandante do navio, que Fecha-a uma abobada que tem 5 metros na sua
acusava de exercer uma disciplina demasiado rigoro· maior altura: recebe luz e ar por uma claraboia em
sa, pedindo a sua substituição. A situação foi domi- forma de chaminé circular, cuja abertura tem apenas
nada no dia 10, tendo sido presos muitos marinheiros. D,m 40 de raio, e pela porta de entrada, gradeada de
No dia 13 foi a vez da guarnição do INasco da Ga- ferro, que abre sobre o patamar interior da escada que
mail (3030 tons., 12 peças de artilharia, entre as quais conduz à prisão. Foi sempre mal iluminada e .peor
duas de 20 cm., além de outro armamento, e 259 ho- ventilada. C/Nesta casa não há camas nem tarimbas;
mens, oficiais, sargentos e praças) se insubordinarem apenas, por mobiliário, o caneco de policia (1) e um
também, exigindo a libertação dos seus camaradas do cantara para água)}. ( ... )
IcD. Carlos)). Esta sublevação durou apenas a noite de Sabe quantos presos são encarcerados neste
13 para 14. cubiculo? Quasi sempre 30 e, às vezes, mais. (. . .) Os
Ambas terminaram sem sangue, graças ao espírito desgraçados sofrem supplicios ( ... ) os mais suaves
de disciplina que sempre reinou na nossa Marinha, dis- delles são as chibatadas de cavalo marinho, distribui·
ciplina consentida e não imposta, porque esta não das sem comiseração, até deixar em sangue as carnes
poderia resultar a bordo dos navios, daí que a inter- dos reclusos. (. .. ) E ai do que der um gemido! ( ... )
venção de oficiais e do comandante da Divisão, um Mas a IICOva da Onçall é um eden comparado com
almirante, no caso do CID. Carlosll, tenham conseguido a IICasa Escural! da mesma fortaleza. ( ... ) Não a fiquei
acalmar os ânimos e repor a legalidade. conhecendo, porque quando abriram a porta, tive
O que acaba de ser escrito, serve apenas de introito necessidade de me afastar, com receio de ser quei-
ao mencionado artigo da Kllustração Portuguesa», mado pelo bafo que d'ali saia. Calculo, que deve ter
publicado um ano depois, do qual transcrevemos o uma capacidade de 50 metros cubicos, quando muito.
seguinte: Na ocasião tinha lá dentro 23 homens! ( ... )
S. Julião da Barra não foi um epilogo do drama: As trevas 1~ dentro são completas (. . .) a permanên-
- os marinheiros vivem ainda em África, na nossa poso cia na IICasa Escura!1 tem, como pena acessoria ( ... ) o
sessão occidental de Angola. Corre o paiz, como um jejum a pão e água, em dias alternados (. . .) A's vezes,
rastilho a que o primeiro gesto de bondade lançou por uma insignificancia ( .. .) a simples falta a uma for-
generosamente o fogo, um pedido de perdão que já matura do recolher (. . .) ou não ter feito a barba ao
conta dezenas de milhares de assinaturas. Foi o Século domingo' ( ... )
quem levantou o primeiro grito, e logo no coração de Enuncia-lo assim, sem redundancia de phrase, sem
todos os portugueses desabrochou espontaneamente, mais colorido de expressão, bastará, cremos nós, para
radiosa e pura como uma aurora de primavera, a f16r que o pais inteiro se levante a clamar IIPiedadell, a ela-
azul e perfumada da clemencia e da p iedade.
Mas enquanto esse movimento tão humano aJas- (1) Recipiente para dejectos.
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