Page 383 - Revista da Armada
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A MARINHA JOANINA (2)


             Pero de Sintra, um homem que dedicou
             Pero de Sintra, um homem que dedicou

          a sua vida à navegação na costa africana
          a sua vida à navegação na costa africana



               s dificuldades da investigação histórica não se atêm ao facto  tando tirar conclusões lógicas. É assim, afinal, que se vai fazendo a
               de que se está a procurar reproduzir acontecimentos do  História. Pero de Sintra foi um navegador notável, havendo quem
         Apassado, sobre os quais não existem testemunhos ou docu-  alvitre que poderá ser um familiar (ou até descendente) de Gonçalo
         mentos claros que os elucidem. Com muita frequência, ao ler re-  de Sintra, um escudeiro do Infante que morreu na costa da Guiné
         latos de pessoas que viveram nesses tempos remotos ficamos com a  em 1444. Na realidade, sabe-se que pertenceu à casa senhorial de D.
         impressão de que tudo está certinho, tudo está bem descrito e nada  Henrique e que, após a sua morte, passou a servir Afonso V, como
         pode ser mais verdadeiro do que aquilo que se está a ler. Podemos  seria natural e lógico, atendendo às suas qualidades de marinheiro
         referir, a título de exemplo, que                                              e ao facto das navegações na
         Cadamosto (um italiano conhe-                                                  costa africana terem passado a
         cido que navegou nas costas da                                                 ser um encargo do rei. E, se ca-
         Guiné no tempo do infante D.                                                   lhar, não será tão disparatado
         Henrique) nos relata a explo-                                                  que se tenha gerado esta con-
         ração da costa africana além do                                                fusão, entre Duarte Pacheco e
         rio Geba, como tendo sido feita                                                Cadamosto. Repare-se que não
         por duas caravelas comandadas                                                  há muitas informações sobre as
         por um tal Pero de Sintra,                                                     viagens de exploração efectua-
         depois da morte do Infante. E                                                  das no final da vida de D.
         não se esquece de acrescentar                                                  Henrique: houve uma expe-
         que quem lho contou com todo                                                   dição ao Norte de África (1458)
         o pormenor “foi um moço por-                                                   que deverá ter mobilizado
         tuguês”, seu “amigo”, que com                                                  muitos navios; sabe-se de umas
         ele “tinha estado naquelas par-                                                viagens dispersas efectuadas
         tes”, por seu escrivão. É claro                                                por Diogo Gomes; pode supor-
         que um testemunho destes con-                                                  -se que o tráfico comercial com
         vence com facilidade e levaria a                                               a Guiné manteve alguma activi-
         concluir que todas as descober-                                                dade e é possível que se conti-
         tas além da Guiné (ou do rio                                                   nuasse a tentar chegar mais a
         Geba) teriam sido efectuadas                                                   sul. Pelo menos é essa a lógica
         depois da morte de D. Henri-                                                   que nos sugere a dinâmica das
         que. No entanto, um outro rela-                                                “descobertas marítimas” da-
         to posterior efectuado por                                                     quele tempo. Por isso, não nos
         Duarte Pacheco Pereira, diz-nos                                                custa acreditar que Cadamosto
         que as descobertas no tempo do                                                 comece o relato da viagem de
         Infante foram até à Serra Leoa e                                               Pero de Sintra, no sítio onde ter-
         que Pero de Sintra explorou a                                                  minava o seu conhecimento da
         costa a partir daí, já depois da                                               costa africana (ou seja: no rio
         morte do mesmo. E também  A costa africana Ocidental.                          Geba), em vez de o começar na
                                   Carta Portuguesa anónima que se encontra na Biblioteca Estense, em Modena.
         acrescenta que foi assim que lho                                               Serra Leoa. Duarte Pacheco,
         contou o próprio Pero de Sintra. Como podemos ver, não havia  escrevendo bastante depois destas viagens, numa fase em que o
         grandes hesitações em reforçar os relatos de acontecimentos deste  assunto já teria sido comentado por muita gente, talvez tivesse um
         tipo, com o testemunho de alguém que nunca poderia mentir,  melhor conhecimento dos factos. Aliás existem outros indícios que
         procurando dar-lhes uma credibilidade avassaladora. Quem pode-  nos levam a supor que, de facto, no tempo de D. Henrique se
         ria duvidar do que escreveu Cadamosto, quando o mesmo lhe foi  chegou até à Serra Leoa, e há até quem pretenda que se foi mais
         contado por alguém que tinha feito a viagem? Quem poderá duvi-  longe, mas isso não nos parece provável.
         dar de Duarte Pacheco se ele o ouviu do próprio Pero de Sintra?…  Duma forma ou doutra, foi Pero de Sintra que, em 1461 ou 62,
         É claro que um ou outro (ou os dois) está a transmitir uma infor-  ultrapassou a Serra Leoa e navegou para sul, passando o actual
         mação errada, porque as duas situações são contraditórias, mas isso  Cabo Mensurado (6º 14’N) e fundeando em frente de uma mata
         não quer dizer que o faça de forma insidiosa ou propositada. No  que se lhe segue, a que chamaram de Santa Maria (navegaram até
         fundo, esta forma de falar (escrever) é um estilo próprio que procu-  perto dos 6ºN).
         ra reforçar a posição do autor e que pode não corresponder a uma  Mas, Pero de Sintra continuou a andar por aquelas paragens, e
         intenção de mentir ou de falsear os acontecimentos. É provável que  Duarte Pacheco refere que um pequeno ramo do Delta do Níger (já
         os factos reais não fossem muito bem conhecidos de todos (como  em pleno golfo da Guiné) recebeu o nome de rio de Pero de Sintra,
         muitos acontecimentos recentes não são bem conhecidos de muita  descoberto, certamente, já na década de setenta do século XV.
         gente que deles fala) e alguns autores, convencidos de que a sua  Sabemos ainda que ele esteve na esquadra que foi construir o caste-
         versão era mais correcta do que as restantes, fossem tentados a  lo da Mina em 1481 e por lá deve ter morrido em data que não con-
         enfatizar a sua narrativa desta forma.               seguimos saber com exactidão (antes de1484).
           Mas o que se terá passado então?… Com certeza absoluta,
         provavelmente nunca o saberemos. Apenas nos resta tecer algumas                          J. Semedo de Matos
         conjecturas e procurar relacionar essas descrições com outras, ten-                              CTEN FZ
                                                                                      REVISTA DA ARMADA • DEZEMBRO 98  21
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