Page 44 - Revista da Armada
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Poder Marítimo:
Poder Marítimo:
Tradição e Ciência
Tradição e Ciência
A TRADIÇÃO HISTÓRICA:
O BINÓMIO COMÉRCIO/DEFESA
passado marítimo de Portugal está tão dis-
tante como a fundação da nacionalidade. As
O análises a esse passado centram-se quase
exclusivamente nos feitos militares, enfatizam as
grandes armadas e os combates navais, e esquecem
que o país nasceu e se afirmou no contexto interna-
cional, devido ao poder resultante da ampla articu-
lação de actividades políticas, económicas, sociais e
militares ligadas ao mar.
Apesar de as práticas política e estratégica
nacional, nos reinados de D. Dinis e de D. João II,
evidenciarem o claro entendimento deste facto, é só
em meados do século XVI que Fernando Oliveira
publica a “Arte da Guerra no Mar”, um importante
tratado de estratégia marítima, que sistematiza e
define os conceitos de uso e de controlo do mar. Na
sua opinião a operacionalização destes conceitos
requer capacidades de presença, de protecção e de
projecção de força, para além de navios mercantes,
de bases e de entrepostos comerciais. Desta forma
simples e clara, Fernando Oliveira identificou os factores do comanda o comércio mundial comanda as riquezas do mundo
poder marítimo que estimularam a ascensão de Portugal como e, consequentemente, o mundo”.
potência mundial nos séculos XV e XVI. Se, no passado, o poder marítimo centrado nos conceitos de
Não haverá grandes dificuldades em admitir a semelhança uso e de controlo do mar, viabilizou a prossecução de um leque
entre a doutrina estratégica concebida por aquele grande estrate- alargado de objectivos geopolíticos, estamos convictos que, no
gista português, centrada nos conceitos de uso e de controlo do futuro e numa perspectiva tradicional centrada nesses conceitos,
mar, e a preconizada por Alfred T. Mahan no século XIX, que moldará o destino dos Estados.
levou os governos do Reino Unido, da Alemanha, do Japão e, A título exemplificativo vejamos o caso do comércio maríti-
mais tarde, dos Estados Unidos, a adoptar esses mesmos con- mo. No passado, as nações que organizaram as suas economias
ceitos, a reajustar as missões das suas marinhas e a estruturar os em torno desta actividade dominaram o mundo. Presentemente,
respectivos sistemas de força naval, muito antes de se a generalidade dos cidadãos não entende a importância do
envolverem em violentíssimas confrontações recíprocas. Na comércio marítimo, devido ao distanciamento entre os portos e
realidade, Fernando Oliveira e Mahan, cada um na sua época, os centros urbanos, que torna a actividade marítima invisível ao
não se limitaram a interpretar a história. Fizeram história! A par cidadão comum. Este, só reconhece o significado do comércio
desses dois vultos do pensamento estratégico marítimo mundial, marítimo quando alguma perturbação de cariz sócio-profissional
parece justo lembrar Sir Walter Raleigh, que em 1616 enfatizou ou de segurança afecta o normal funcionamento do sistema de
a importância do poder marítimo escrevendo: transporte e de distribuição dos bens de consumo. Apesar da
“Quem comanda o mar comanda o comércio mundial; quem evidência deste alheamento, a globalização económica con-
tribuiu para que o comércio marítimo se intensificasse entre
todos os continentes, numa escala sem paralelo ao nível da efi-
ciência e da eficácia, sendo o custo do transporte virtualmente
negligível, facto que estimulou as afinidades e o desenvolvimen-
to dos litorais.
A globalização económica e o papel do transporte marítimo,
sobretudo no que se relaciona com os recursos estratégicos,
condicionam claramente a política mundial, em virtude de qual-
quer perturbação ter repercussões planetárias. O petróleo, con-
siderado indispensável nos dias de hoje, será apenas um dos
recursos vitais transportados por mar. Se tomarmos como válido
um certo sentido de continuidade dos grandes fenómenos políti-
co-estratégicos, afigura-se plausível considerar que as ameaças à
liberdade de circulação nos oceanos, existentes no passado, se
verificarão novamente no futuro. Por isso, só Estados cujas mari-
nhas militares mantenham as missões clássicas de presença, de
protecção e de projecção de força, necessárias ao uso e ao con-
trolo do mar, terão capacidade para satisfazer os anseios de
segurança, de progresso e de bem-estar dos seus cidadãos, isto
é, para promover um futuro melhor.
6 FEVEREIRO 99 • REVISTA DA ARMADA